Uma perversão curiosa ocorre com a máxima de Leon Tolstoi (1828-1910), a vindicar que ser universal é falar da própria aldeia: ser universal para a mídia, agora, seja talvez falar do universo particularíssimo de cada leitor. ‘Estamos entrando numa era de mídias ‘eu-cêntricas’ (I-centric): o que importa é que tragam o conteúdo que eu quero, quando eu quero, no formato que eu quero, mas apenas quando eu o quiser’, disse o jornalista e professor Rosental Calmon Alves, da Universidade do Texas, em Austin, perante a uma atônita platéia composta de boa parte da elite do jornalismo investigativo mundial, reunida duas semanas atrás, em Londres.
Rosental, ex-correspondente do Jornal do Brasil nos EUA, criador do JB Online, primeiro jornal brasileiro na internet, está à frente da Cadeiras Knight & Unesco, em Comunicação, na Universidade do Texas. Coube a ele alertar a velhos editores e intrépidos repórteres que o jornal, da forma como ora o conhecemos, está com os seus dias contados, necessita de agudas transformações e de, no mínimo, oblíquas adaptações.
Sob sigilo
A fala de Rosental ocorreu em Londres, durante a reunião anual do International Consortium of Investigative Journalists, entidade dos EUA que congrega 94 repórteres investigativos de 48 países. [Clique aqui para ler sua apresentação, em inglês; arquivo powerpoint, 271 Kb]. Além de Rosental, os brasileiros convidados ao evento foram o colunista Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, e este observador.
A análise do professor Rosental Calmon Alves causou tanto impacto como a do fundador do ICIJ, Chuck Lewis, ao anunciar que uma soma de 30 milhões de dólares (cerca de 70 milhões de reais) será amealhada até o final deste ano. Lewis, um veterano produtor do programa 60 Minutes, da CBS, quer reunir esses recursos como único intuito de proteger jornalistas, sobretudo dos Estados Unidos, de ações cíveis indenizatórias milionárias.
O órgão a cuidar da soma se chama Fundo para a Independência no Jornalismo. ‘Há centenas de casos de processos contra jornalistas nos EUA, cada vez crescendo mais. Num caso de uma reportagem que o ICIJ fez, por exemplo, é pedida uma indenização de 4 milhões de dólares’, disse Chuck Lewis a este Observatório.
Chuck ressalta que ‘uma nova forma de tratamento está emergindo: a litigância’. E arremata: ‘O jornalismo está sendo submetido há anos e anos pelos custos dessa litigância. Qualquer história desconfortável pode ser assassinada ou desacreditada, não porque esteja incorreta, mas por causa da força dos implicados. A litigância é uma arma efetiva da censura para qualquer um com riqueza e vontade de usar a Justiça para deter o escrutínio público’.
Os dados revelados por Chuck, que agora monta um banco de dados sobre processos judiciais contra jornalistas, também chegam às mais novas formas de censura às informações públicas. O número de documentos colocados sob sigilo em 2001 era de 8 milhões e, em 2004, subiu para 16 milhões – o maior índice desde 1980. Já o número de documentos abertos ao público por ano sob a administração Bill Clinton era de 150 milhões; o volume caiu para apenas 25 milhões em 2004, sob George W. Bush.
Novas plataformas
Se o presente revela uma verdadeira loteria legiferante a envolver tais litigâncias, o futuro dos jornais, que ora singularmente se redesenha, indica dados jamais imaginados pelos spin doctors da análise das publicações. Com base no estudo ‘Abandoning the news’, da Carnegie Corporation, divulgado no primeiro semestre deste ano, Rosental mostrou que 39% dos jovens americanos entre 18 e 34 anos vêem a internet como a fonte de informações mais importante, seguida de notícias locais de TV (14%), das notícias de TV a cabo (10%), vindo em seguida os jornais (8%).
Os jornais também figuram como a mídia lanterninha nos quesitos confiabilidade, atualização, noticiais úteis, forma útil de se aprender algo, entretenimento e provedores das notícias só quando o consumidor as quer. A internet ganha de todas as outras mídias, somados todos esses quesitos.
‘O jornalismo costumava ser uma leitura, agora é uma conversação’, diz Dan Gillmor, do movimento Citizen Journalism, citado por Rosental. Sua apresentação revela que já existem no mundo 30 milhões de blogs e um novo deles surge a cada segundo. Para Rosental, cada vez os jornais vão se tornar ‘webcêntricos’. Para justificar sua assertiva, ele trouxe excertos de um famoso memorando de Bill Keller, editor-executivo do The New York Times, distribuído em 2/8, a revelar o seguinte: na semana retrasada, foi anunciada a fusão das redações do jornal em papel e do NYT na web; com isso, refere Keller, as reportagens do NYT não serão formatadas para se encaixar na versão digital. Mas a primeira versão da história apurada é que vai para o online; e a versão mais consolidada fica com o impresso.
‘Enquanto o jornalismo tal como o conhecemos está morrendo, novas formas de jornalismo estão sendo construídas. Nos próximos anos essas versões vão se erigir na internet, nos celulares, nos aparelhos de MP3, na TV interativa, nas novas plataformas a serem lançadas’, vaticinou Rosental. ‘O leitor quer editar, não quer apenas ser editado por alguém.’
Jornal gratuito
Na mesma semana em que ele falou à seleta platéia do ICIJ, em Londres, o New York Times anunciava nos EUA que iria lançar uma versão gratuita. A poucos metros do púlpito em que falava Rosental, na Cass Business School, na City londrina, homens de meia-idade distribuíam nas calçadas, com avidez, exemplares tablóides, gratuitos, do The Evening Standard, chamados de ‘Free Lite’.
Nas ruas de Londres, esses distribuidores parecem implorar com os olhos que os transeuntes estiquem as mãos para apanhar um exemplar. Rosental explica que o jornal gratuito é uma das saídas para que se mantenha o fluxo de anúncios entre leitores – e lembra que, não faz muito tempo, um londrino processou um desses tablóides gratuitos porque não queria mais recebê-lo em casa, mesmo que de graça.
São todos, sem dúvida, arcanos obscuros sobre o futuro do jornal impresso.
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Jornalista, integrante do International Consortium of Investigative Journalists