Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Consequências da nova demonstração de força das Big Techs

(Imagem de Gerd Altmann por Pixabay)

Quem esperava que as plataformas digitais atenuassem as dificuldades financeiras da grande imprensa sofreu um baque, quando a empresa Meta anunciou, no dia primeiro de março, a suspensão do pagamento de royalties (1) pela reprodução na rede Facebook de notícias jornalísticas publicadas em jornais, rádios e telejornais convencionais, na Australia (2). É uma decisão que pode mudar o debate sobre a regulamentação das Big Techs ,inclusive aqui no Brasil.

O acordo da Facebook com o governo australiano, assinado em 2021, foi o primeiro no mundo na categoria e serviu de pretexto para que vários outros países, especialmente Canadá, Reino Unido, França e Alemanha adotassem medidas regulatórias na atuação das plataformas digitais dentro de seus respectivos territórios. Foi também rotulado como uma vitória dos conglomerados de imprensa e de um bom número de pequenos e médios empreendimentos jornalísticos no esforço de preservar a cobrança de direitos autorais pela reprodução de material noticioso.

A decisão da Meta, dona das redes Facebook, Instagram e WhatsApp, deixou claro que as Big Techs (grandes empresas de tecnologia que controlam 90% das plataformas digitais) continuam hegemônicas no controle dos fluxos interpessoais de notícias na internet ao alterar regras segundo os seus interesses. A decisão do mega conglomerado tecnológico fundado e dirigido por Mark Zuckerberg afeta apenas a aba Facebook News, do site do Facebook onde a rede reproduzia literalmente notícias publicadas na imprensa australiana. 

Apenas 3% dos usuários visitam regularmente a aba Facebook News, o que representa uma parcela reduzida dentro da audiência total da rede na Austrália, e consequentemente um faturamento também muito pequeno. Foi claramente uma demonstração de poder, na longa e global batalha entre as Big Techs e os grandes conglomerados jornalísticos da era analógica, anterior à internet. Antes do anúncio da suspensão do pagamento de royalties à imprensa australiana, a Meta já havia deixado claro que não tinha mais interesse no jornalismo alegando que ganhava pouco dinheiro com ele.  

Salve-se quem puder

A cobrança de direitos autorais sobre notícias jornalísticas está no centro de uma grande polêmica jurídica, econômica, cultural e informativa, porque a digitalização minou as bases sobre as quais se apoiam os conceitos vigentes até agora no tratamento da propriedade intelectual. Será uma longa e complexa discussão cujo desfecho é imprevisível. Na verdade, o que está realmente em jogo no confronto entre Big Techs e Grande Imprensa é o dinheiro. As redes estão faturando bilhões de dólares anualmente, enquanto os conglomerados jornalísticos lutam para prolongar o máximo possível a sobrevida de um modelo de negócios que perdeu eficiência. 

O outro grande problema da Grande Imprensa é que, especialmente no caso australiano, o acordo com as plataformas foi feito direto com os conglomerados jornalísticos, em especial o poderoso grupo News Corp, mantido pela bilionária família Murdoch. O governo australiano deu o carimbo oficial a um negócio essencialmente privado entre Zuckerberg e Rupert Murdoch, o ícone do News Corp que domina a imprensa do país e controla grandes jornais e redes de TV na Inglaterra e Estados Unidos. Até hoje os detalhes do acordo Facebook/News Corp não foram divulgados.

O fato do interesse de uma grande corporação ter predominado sobre o conjunto da imprensa impediu que os pequenos e médios empreendimentos jornalísticos australianos criassem um movimento contra o “imperialismo” da Meta. Os jornais locais australianos recebiam parte dos royalties pagos pela Facebook, mas era uma parcela mínima do total.  Mesmo assim, são numerosos os casos de pequenos projetos jornalísticos que dependem diretamente dos pagamentos.

O ponto fraco das Big Techs

A nova demonstração de poder do grupo Meta, numa decisão que já havia sido implantada no Reino Unido, França e Alemanha no ano passado, provavelmente será estendida a todos os países que tentarem regulamentar as plataformas digitais. Para elas, a questão da reprodução de material da imprensa é um tema secundário porque sabem que as notícias entram nas redes compartilhadas por usuários como parte de uma produção informativa chamada de relacional pelos pesquisadores acadêmicos. A notícia nas redes sociais não é um pacote fechado sobre o qual se pode cobrar um preço como na imprensa convencional, mas o resultado de centenas e até milhares de interações entre usuários, num processo contínuo e ininterrupto de produção de novos conteúdos informativos.

Por isto, quando insiste numa regulamentação das plataformas focada no pagamento de direitos de autoria na reprodução de material publicado na mídia, a grande imprensa ignora o maior ponto fraco das Big Techs. Toda a sua potência econômica vem da apropriação sem pagamento de dados depositados por bilhões de pessoas comuns em redes sociais e mecanismos de busca. Estes dados são posteriormente processados e analisados por algoritmos das grandes empresas de tecnologia para apoiar estratégias de venda de espaços publicitários na internet, o negócio mais lucrativo na economia mundial atualmente.

Este modelo de apropriação da informação, hoje a matéria mais valorizada do planeta, tende a crescer e alimentar uma concentração ainda maior de poder econômico nas mãos das norte-americanas Meta, Alphabet (dona do Google e Youtube), Apple, Microsoft e Amazon, e das chinesas Baidu (buscas e inteligência artificial), ByteDance (dona da rede Tiktok), Alibaba (comércio eletrônico), Tencent (dona da rede WeChat, a Facebook chinesa) e Xiaomi (celulares). Só a Alphabet, Amazon e Meta tiveram um faturamento líquido de quase um trilhão de dólares no ano passado. 

O previsível crescimento do controle econômico das grandes empresas de tecnologia sobre o uso da informação pelo conjunto da humanidade torna obrigatório o debate sobre a criação de um imposto social sobre o faturamento das Big Techs. É uma forma de redistribuir para toda a sociedade o lucro que as plataformas obtêm com dados alheios e que hoje vai para apenas alguns órgãos da imprensa. São dados cujos proprietários originais somos todos nós e que alimentam o fantástico faturamento de no máximo dez megaempresas. É a melhor forma de evitarmos o surgimento de uma ‘corporocracia’ (3) planetária.

Notas

  1. Royalties são uma espécie de taxa paga pelo direito de usar, explorar ou comercializar um bem. Esse bem não precisa ser apenas físico, como um produto ou espaço – ele pode ser também uma marca, um processo, uma música ou até mesmo uma tecnologia. Os royalties são cobrados sobre a receita gerada pelo uso do bem.
  2. A suspensão dos pagamentos acontecerá quando acabarem os atuais contratos, ou seja, não haverá renovação. 
  3. ‘Corporocracia’ é um neologismo derivado da expressão inglês corporatocracy que designa o exercício (hipotético) do poder político e econômico de um país através de corporações empresariais. 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.