Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa e o estado paralelo no sistema policial

(Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil)

A prisão dos possíveis mandantes do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco permite vislumbrar parte do novo contexto em que age o estado paralelo ilegal no Rio de Janeiro. Até agora as máfias do crime organizado na capital fluminense eram vistas como tumores marginais na estrutura de poder, mas o caso Marielle indicou que há uma metástase em curso tornando difícil identificar quem exerce um papel duplo dentro do poder público.

Todos os principais envolvidos no assassinato ocorrido em março de 2018 tinham ou ainda têm funções legais no aparelho estatal carioca, mas assumiram uma dupla militância ilegal ao cumprir ordens e atingir objetivos estabelecidos pelas máfias de milicianos, narcotraficantes e de bicheiros (controladores do jogo ilegal do bicho). Esta duplicidade de funções configura a existência de um estado paralelo dentro do estado de direito, o que sinaliza uma perturbadora ameaça ao sistema democrático e à Constituição do país.

Cria também um complexo desafio à imprensa e ao jornalismo porque implica uma mudança nas rotinas de produção de notícias, como ficou claro na relação de repórteres e editores com o ex-chefe da Polícia Civil, do Rio de Janeiro, delegado Rivaldo Barbosa, preso por suspeita de obstruir a investigação do assassinato de Marielle Franco. Barbosa assumiu a chefia de polícia no dia anterior ao do crime e sempre manteve relações cordiais com a família da vereadora e com a imprensa, dizendo que o esclarecimento da morte era “uma questão de honra” para ele. 

Durante os seis anos transcorridos entre o assassinato e a prisão dos mandantes a imprensa sempre se deteve mais na cobertura e na análise da participação das pessoas envolvidas, sem dar muita atenção ao sistema delinquencial onde estavam inseridas. A personalização da atividade criminal no Rio de Janeiro impediu que o debate público fosse estendido ao estado paralelo que foi se formando gradualmente na segunda maior cidade brasileira, onde 60% de sua área urbana (384 quilômetros quadrados) está submetida ao controle de algum tipo de máfia ilegal. 

O Rio de Janeiro se tornou o epicentro das atividades do estado paralelo cuja face mais visível é o aparelho policial e o sistema penitenciário. O sistema de segurança do estado não é mais confiável porque tornou-se muito difícil identificar quem é e quem não é membro da chamada “banda podre” da polícia. O caso Marielle mostrou também como o paralelismo de poder contagiou a Câmara de Vereadores da cidade e o próprio Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. 

Na conjuntura atual, é importante punir os criminosos membros de milícias e máfias, mas é muito mais importante combater o estado paralelo sob o qual se abrigam todos os indivíduos e facções que propõem o uso da força como regra principal na solução de divergências e conflitos. Os pesquisadores acadêmicos afirmam que o estado paralelo não quer controlar o poder constitucional, mas sim usá-lo para lograr impunidade em suas ações extralegais, como mostra o depoimento de quem mora em áreas controladas por uma das três principais milícias cariocas (Comando Vermelho, Primeiro Comando e ADA – Amigos dos Amigos) onde é permanente o uso da força e da intimidação. 

O papel-chave do jornalismo

A preservação do estado democrático de direito exige o início de um amplo debate público sobre a natureza e os riscos políticos do estado paralelo ilegal. E a imprensa tem uma responsabilidade central na abertura e condução deste debate, pois cabe a ela gerar as informações que vão alimentar o compartilhamento de opiniões e novos dados entre usuários de redes sociais. As redes são hoje, cada vez mais, o principal espaço de formação de opiniões e, portanto, um público prioritário para o jornalismo.  

A crescente evidência de uma simbiose entre lei e criminalidade na gestão da segurança pública nas grandes cidades, como é o caso do Rio de Janeiro, indica que a imprensa precisa mudar suas rotinas de produção de notícias, especialmente na cobertura do submundo do crime. Tornou-se necessário um distanciamento em relação às fontes oficiais porque a eventual dupla militância de agentes da lei compromete a credibilidade de informações fornecidas a repórteres. O caso do delegado Rivaldo Barbosa é exemplar. 

Ele sempre foi considerado uma fonte altamente confiável por sua personalidade e pelo cargo que ocupava. Apesar disto o delegado Barbosa, durante seis anos, alimentou a imprensa com informações distorcidas ou falsas sobre o caso Marielle, levando à publicação de notícias que o público recebia como verdadeiras.  Esta discrepância entre o que ocorria nos bastidores da polícia carioca e o que as pessoas consumiam inevitavelmente contribuiu para aumentar o descrédito tanto nas autoridades como na imprensa.

A mudança que se impõe, em nome da sobrevivência do jornalismo como atividade confiável, é uma maior preocupação dos profissionais em investigar diretamente com a população, testemunhas e vítimas as causas, envolvidos e consequências de eventos relacionados às máfias do estado paralelo. O jornalismo investigativo em profundidade passa a substituir o jornalismo de fontes como estratégia prioritária no relacionamento da imprensa com a polícia e autoridades de segurança. 

O combate ao estado paralelo passa a ser não apenas uma pauta ou obrigação, mas uma causa que a imprensa precisa abraçar mais pela sua própria sobrevivência do que por lucros e vantagens eventuais. O compromisso dos grandes conglomerados midiáticos do país com a defesa da democracia, cantado em prosa e inúmeros editoriais, passa hoje pela eliminação do estado paralelo responsável pela metástase que ameaça a nossa credibilidade nas instituições, especialmente às vinculadas à segurança pública. 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.