Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Photoshop, realeza britânica e a ética na assessoria de comunicação

(imagem redes sociais)

Catherine, princesa de Gales, sorri ao centro da foto. Ela parece radiante, ao lado dos filhos. A jovem esposa do futuro rei da Inglaterra é o retrato de uma mãe plena, feliz, saudável. Seus três filhos a circundam. Todos parecem igualmente felizes, plenos.

Seria a imagem perfeita de uma mãe de comercial de margarina de qualidade duvidosa, não fosse um detalhe simples: a foto é falsa.

Você que me lê, neste exato momento, suspira fundo. Sim, vamos falar, cá no ObjETHOS, de um resquício da idade média, uma monarquia que sequer deveria existir. E nós concordamos sobre isso. Mas a verdade é que essa peça de museu viva que são os Windsor ainda é relevante na esfera pública global. Gostemos ou não.

Para nós, pesquisadores e profissionais da área da Comunicação, o caso da esdrúxula foto manipulada digitalmente, para além dos nossos narizes torcidos, deixa algumas lições valiosas que envolvem aspectos éticos que estão na base do Jornalismo e do trabalho de Relações Públicas.

Recapitulando, para você que andava saltitando pela superfície lunar e não viu nada sobre o tema.

Em janeiro de 2024, Kate ingressa em um hospital particular em Londres para uma cirurgia abdominal não especificada. Ela teria passado duas semanas internada e, então, teve sua volta para casa anunciada pela assessoria de imprensa do Palácio de Kensigton.

Estava tudo certo, não fosse sua completa ausência de compromissos públicos pelos dois meses que se seguiram. Veja, a própria existência da realeza britânica depende do que ela simboliza. Não há nenhum outro motivo para que os contribuintes mantenham um grupo de pessoas que custa alguns milhões de libras aos trabalhadores mais simples do que aquilo que ela simboliza (e não parece ser um bom motivo). O tal poder simbólico, sobre o qual falava Pierre Bourdieu. Logo, aparecer é parte do “trabalho” dessas pessoas.

Kate, naquele momento, simbolizava um enorme ponto de interrogação. Sua ausência alimentava um fluxo constante de teorias da conspiração que, provavelmente, faria enlouquecer os profissionais da assessoria de comunicação que atuam no entorno da família real.

A foto, sobre a qual falamos na abertura desse texto, era, então, uma solução a esse problema. No dia das mães britânico, Kate reaparece sorridente. A foto é distribuída oficialmente pela assessoria. As agências internacionais, por sua vez, a reenviam a veículos de imprensa pelo mundo. Todo mundo viu. Até você, que torceu o nariz uns segundos atrás.

Em tempos de Photoshop, Inteligência Artificial e mil formas de manipular uma imagem, a fotografia enviada pelo Palácio de Kensigton beira o amadorismo. Há visível traços de manipulação identificados por gente profissional e amadora. As agências retiram a imagem dos seus sites, emitem comunicados e…

O que estava ruim, piora muito.

A gestão da crise, que antes versava sobre a ausência da princesa, torna-se uma enorme bola de neve que expõe uma tentativa simplória de manipulação da opinião pública por profissionais que, na melhor das hipóteses, viveram um lapso ético constrangedor.

E, não. A explicação da princesa não parece verossímil. Na verdade, parece tão legítima quanto a própria foto.

“Como muitos fotógrafos amadores, ocasionalmente faço experiências com edição. Gostaria de expressar minhas desculpas por qualquer confusão que a fotografia de família que compartilhamos ontem tenha causado. Espero que todos que comemoram tenham tido um feliz Dia das Mães”, escreveu ela antes de encerrar sua postagem com um “C” de Catherine.

Sim, vamos acreditar, por um segundo que, uma família cercada de assessores, que só existe por aquilo que ela simboliza, teria divulgado uma imagem manipulada pela cliente. Seria de um amadorismo tão grande que beira o inacreditável.

Então partimos, popperianamente (uma palavra que nem existe), para uma hipótese concorrente mais plausível.

A assessoria da princesa optou por divulgar uma foto falsa, manipulada digitalmente. Desinformação, dessas que vemos todos os dias. Isso nos abre um debate ainda mais profundo. Até que ponto um assessor vai?

A matéria prima de um assessor de imprensa é a mesma de um jornalista em uma redação: a realidade. E, deixando de lado a discussão (filosófica e relevante) do que é real, nós trabalhamos com construções da realidade publicamente relevante – como, vale lembrar, nos ensina Miquel Rodrigo Alsina – que são elaboradas a partir de fatos apurados.

Não há nenhum exercício elástico ético que justifique manipular uma imagem e induzir redações ao erro. Nem mesmo a gravidade da doença da princesa, que busca vencer um câncer.

Temos bons trabalhos pensando a atividade de assessoria de imprensa e reputação. Vários deles, como os escritos pelo professor Jorge Duarte e pela professora Margarida Kunsch, analisam os aspectos éticos dessa atividade. Precisamos voltar a eles, atualizá-los, discutir intensamente esse ponto com os futuros profissionais de Relações Públicas e Jornalismo que estão nas nossas faculdades de comunicação. Em uma época de visível expansão da atividade de assessoria de imagem e reputação, não podemos deixar de lado o básico. Apuração e responsabilidade com a informação são traços basilares da nossa atividade. E não há reputação sem verdade.

Texto publicado originalmente em objETHOS.

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Álisson Coelho é Doutor em Comunicação, coordenador dos cursos de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Feevale. Fundador da “Deixa a vírgula me levar” e pesquisador associado do objETHOS.