Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa, um poder familiar na América Latina

(Terceira e última parte)


A indiferença da imprensa latino-americana à massa de miseráveis, apresentada nos posts anteriores decorre principalmente da ausência de uma agenda solidária que mostre as reais causas das estatísticas que envergonham os países do continente e motive a sociedade a procurar soluções para enfrentá-la. Não há espaço para assuntos ‘desagradáveis’, pois o conteúdo publicado segue as resultados de pesquisas de mercado nas quais o leitor escolhe o que quer ler. Esta opção é a primeira da série que considera os meios de informação como um produto qualquer. Ao seguir o que o leitor responde, a imprensa abdica da nobre função de educar e conscientizar o público que a sustenta. Portanto, nada de apontar para os problemas surgidos dos conflitos entre classes terrivelmente miseráveis e classes ostensivamente milionárias. O que vale é a exaltação das individualidades, a exibição de luxos restritos, os perfis dos mais ricos, dos mais bonitos etc., num permanente incentivo para o aprofundamento do abismo que separa os mais ricos dos mais pobres.

A perda do interesse da mídia por assuntos que afetam a coletividade é esplendidamente exposta por Beatriz Sarlo, professora de literatura argentina e uma de observadoras da atualidade mais sofisticadas sobre o universo midiático. No lugar de questões e problemas comuns a todos, ela resume, ‘prevalece o enaltecimento à individualidade, a exposição dos dramas, alegrias e futilidades milionárias, a fricção causada pelo confronto entre a ‘democracia midiática’ e a ‘democracia representativa’’.

Também de Beatriz Sarlo são os dois parágrafos a seguir, nos quais ela trata da mudança de marcha pela qual passou o mundo com o advento da Internet:

‘A esfera midiática introduziu inúmeras modificações na apresentação dos problemas que magnetizam a sociedade, mas o que fez com o rearranjo de fronteiras entre o que é público e o que é privado. Como conseqüência disso, alterou-se a relação entre os fatos que afetam a todos os cidadãos e aqueles cuja projeção diz apenas aos que estão provada e diretamente envolvidos em um conflito. Emerge uma solidariedade do privado em uma sociedade que está perdendo critérios públicos de solidariedade’

‘A videoesfera [parte da esfera representada pelos recursos áudio-visuais] é um espaço hegemônico em expansão’, continua. ‘A dimensão simbólica do mundo social foi reorganizada com uma radicalidade e uma extensão somente comparáveis às mudanças causadas pela propagação maciça dos impressos que, como se sabe, foram um fator decisivo na construção da esfera pública moderna. Estamos vivendo o capítulo mais espetacular de um processo de propagação e democratização, muito embora suas características não possam ser consideradas invariavelmente democráticas’.

Para situar a ausência do ‘bem comum’ citado por Beatriz Sarlo, recorro a outro texto, desta vez do jornalista espanhol Matias M. Molina, radicado no Brasil há várias décadas, e responsável pela formação de mais de uma geração de jornalistas, quando era chefe de redação do jornal Gazeta Mercantil. Em uma série recente sobre a história dos jornais mais importantes do mundo, publicada no jornal Valor Econômico, Molina escreveu:

Em um passado bastante recente, os grupos e famílias controladoras dos grandes meios de informação da América Latina acompanharam movimentos tensos de mobilização popular com outro ator: as lideranças militares. A tensão chegou ao extremo dezenas de vezes com a quebra da ordem constitucional e a instalação de regimes militares de violência variada. Nesses momentos, para sobreviver, alguns dos grandes jornais latino-americanos deixaram valores pelo caminho. Em diferentes ocasiões, ao optar entre a ordem – e com ela, a ditadura – e a justiça e a liberdade, eles defenderam a primeira. Em todas as vezes, a defesa de seus interesses foi mais forte do que seus princípios’.

‘A maior parte dos jornais latino-americanos tem inclinação conservadora. Em muitos episódios de mudança violenta da história dos países, foram um fator de estabilidade e de continuidade. Quase todos esses jornais pertencem, há muitas décadas, às mesmas famílias, apesar das ameaça de ruptura da sociedade provocadas pelos conflitos de interesse pessoal ou de geração’.

No Brasil, a concentração de famílias proprietárias dos maiores jornais e grupos de comunicação é uma de suas principais características. No Sul, a família Sirotsky é dona do maior jornal do Rio Grande do Sul, Zero Hora, e do maior jornal de Santa Catarina, A Notícia, além de controlar a rede de televisão aberta, RBS, repetidora do sinal gerado pela Rede Globo de Televisão, a maior do país. Esta, por sua vez, pertence à família Marinho que, além de controlar a maior rede de tevê aberta do país, é sócia da Net, maior rede de tevê a cabo brasileira. Além disso, controla o principal jornal do Rio de Janeiro e um dos maiores do país, O Globo, além dos jornais populares Diário de S.Paulo e Extra, este último também do Rio de Janeiro. Além disso, a família Marinho divide com a família Frias, dona do Grupo Folha, o controle do principal jornal de assuntos econômicos do país, Valor Econômico. A família Frias, por sua vez, é dona do jornal de maior circulação do Brasil, a Folha de S.Paulo, do jornal popular de maior vendagem em São Paulo, o Agora, e divide o controle do maior provedor de acesso à Internet do Brasil, o UOL – Universo On Line – com a Portugal Telecom. A Portugal Telecom substituiu nesse empreendimento, a família Civita, a quem pertence a revista semanal mais vendida do Brasil, Veja, a principal revista de Economia e Negócios, Exame, a MTV brasileira, além de outros títulos de revistas como a edição brasileira da norte-americana Playboy e a revista Caras, réplica da espanhola Hola, em associação com a Perfil, empresa líder do mercado de revistas da Argentina. Por fim, temos a família Mesquita, dona dos jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, da Agência de Notícias Estado e do serviço de informação em tempo-real Broadcasting.

Esta concentração, segundo consta na série assinada por Matías M. Molina, repete-se em vários outros países: no Chile, o grupo editor do jornal El Mercúrio, o mais antigo em língua espanhola, e o grupo Copesa controlam quase todos os veículos de imprensa de circulação nacional e regional do país. No Uruguai, o grupo que controla um dos principais jornais uruguaios, o El País, também está à frente do maior grupo de comunicações do país, com emissoras de televisão aberta e televisão a cabo. No Equador, a empresa que edita do El Comércio, fundado em 1906, também é dono do maior vespertino do país, o Últimas Notícias, além de várias emissoras de rádio e uma de televisão.

Outro traço comum em vários países são as dificuldades financeiras que ainda estão sendo enfrentadas por essas empresas, como resultado das quebras das economias nacionais e dívidas contraídas em dólar para financiamento de planos de expansão que não se concretizaram. Essas dificuldades vêm acarretando a aplicação de vários planos de recuperação e reestruturação, invariavelmente seguidos pela redução de jornalistas e recursos para a produção de reportagens. Outro fenômeno ocorrido no Brasil foi a furiosa substituição de profissionais experientes por jovens recém-saídos das escolas, mais baratos e menos reivindicadores. A troca certamente resultou em melhores balanços contábeis, mas ainda se reflete na queda de qualidade do jornalismo entregue ao público. Dois tradicionais jornais brasileiros – Jornal do Brasil e Gazeta Mercantil – não resistiram. Depois de um longo período de decadência, ambos foram arrematados por um empresário do ramo de construção naval, Nelson Tanure, e hoje são apenas uma sombra da importância que tiveram no passado.