Caetano e Bethânia elegeram o Caldeirão com Mion, na Globo, como espaço de divulgação do celebrado encontro que preparam para o segundo semestre. O resultado mostrou o acerto da escolha e foi um interessante momento de reatar laços das relações entre a música brasileira e a televisão. O programa apresentado por Marcos Mion disse a que veio: bem roteirizado, articulando pontes geracionais. Uma homenagem à altura desses dois grandes artistas da cultura brasileira, de quem Júlio Cortazar (e, de outra forma, Mãe Menininha do Gantois) dizia ser uma única pessoa. O Caldeirão, em sua nova versão, já tinha feito uma bela e merecida homenagem a Djavan; agora, com Caetano e Bethânia, ocupa um lugar que é só nosso, nas tardes de sábado.
O programa foi ao ar na semana em que Julio Maria, em artigo no site da Piauí, argumenta que a relação histórica entre a televisão e a música no Brasil mereceria melhor atenção. A brilhante geração da música brasileira surgida nos anos 1960, que tem em Caetano e Bethânia grandes expressões, deve à televisão a difusão de sua arte e linguagem. Basta ver o documentário “Uma noite em 67”, de Renato Terra e Ricardo Calil para ter essa dimensão. “O artista entrava com o prestígio e a emissora, com o espaço. Assim, o canal ganhava audiência e o artista triplicava o cachê (…) Secos & Molhados, Elis Regina, Wilson Simonal, Jorge Ben, Ronnie Von, Roberto Carlos e toda a Jovem Guarda, Rita Lee e toda a Tropicália, os festivais e toda a MPB, Belchior e todo o pessoal do Ceará. Tudo foi revelado em alguma emissora de tevê”, escreve.
Não que faltem bons programas de música nos canais fechados, como “o Som do Vinil”, de Charles Gavin, e outras iniciativas. Mas também sobram formatos engessados, seja pela dinâmica das apresentações, seja pela expressão musical dos convidados, sem a aura de inventividade dos nossos medalhões. Na TV aberta, os programas da TV cultura, o sofisticado “Ensaio”, dirigido por Fernando Faro, tenta sobreviver depois da morte de seu criador. “Viola, minha Viola” vive das reprises de Inezita Barroso. O longevo “Altas Horas”, de Serginho Groisman, permanece com as músicas ao vivo.
O apresentador do Caldeirão, Marcos Mion, antigo VJ dos tempos da MTV, traz em si a aura dos videoclipes, da fase, entre os anos 1990 e o século 21, em que se experimentaram novas linguagens. E essa experimentação foi colocada em prática na tarde de sábado na Globo, num programa que homenageou o rádio, a indústria do disco, enquanto passava de maneira panorâmica pela carreira dos ídolos homenageados.
É claro que o mundo contemporâneo, com suas redes sociais, suas novas formas de escuta, não é o mesmo do século passado. A televisão não é mais a fabulosa rainha que reinava nas salas de estar da nossa classe média. Mas a velha senhora ainda é capaz de levar emoção e sentido para o seu público. E os cortes dos melhores momentos do Caldeirão com Caetano e Bethânia proliferam nas redes sociais.
Na mesma semana em que circula o texto de Julio Maria, me deparo com um episódio do podcast B3+1, os catálogos e a crise na indústria da música. Muitas coisas interessantes ditas por Benjamim Back, Ice Blue, André Barcinski e João Marcelo Bôscoli. O tempo médio de escuta das músicas hoje é pouco mais de 40 segundos, ninguém ouve uma música inteira. A maior parte das músicas publicadas nas plataformas de streaming não tem uma única audição. A grande fonte de renda das gravadoras hoje é o catálogo de artistas antigos. David Bowie vendeu o seu por US 250 milhões. João Marcelo explica que é preciso trabalho para ressignificar essas obras para as novas gerações. Herdeiros musicais viverão melhor se cuidarem desse patrimônio, o que significa lançar livros, remasterizar os discos, falar deles nas redes e na … televisão. Até mesmo o polêmico comercial da Volkswagen reconstituindo a imagem de Elis Regina, tendo como trilha sonora a canção de Belchior “Como os nossos pais”, provocou, de acordo com Bôscoli, um aumento do interesse dos adolescentes pela música.
Um diferencial dos artistas baianos também é a forma como souberam, ao longo do tempo, administrar suas carreiras. A questão já foi posta por Gil no calor do tropicalismo e foi base da sua política cultural no Ministério, no primeiro mandato de Lula. A intenção antropofágica era levar a cultura popular brasileira para o mundo, ao invés de sermos apenas consumidores passivos do lixo ocidental. Era uma passagem ao pop. O Caetano flaneur de “Alegria, Alegria”, com sua coca cola e a ideia de cantar na televisão.
Não por acaso, uma das estratégias interessantes do Caldeirão do Mion foi quando Lúcio Mauro Filho escolhia as canções, a partir dos velhos discos de vinil da rica e bela obra de Caetano e Bethânia. Exemplo criativo de um formato que serve ao fim mercadológico (ressignificando os catálogos), mas também poético e antropológico – pelo que significa a obra desses artistas- para a experiência da brasilidade em cada um de nós.
Regina Casé os chamou de faróis. Paulo Vieira, mais jovem, disse que Caetano e Bethânia foram segundos pais, ensinando sensibilidades diferentes que o constituíram como artista e comunicador. Momento bonito em que Caetano e Bethânia manifestaram sua admiração pelo trabalho do Paulo. É também de televisão que se trata, na forma como Paulo é uma espécie de tropicalista em seus mergulhos pelas histórias do Brasil profundo. Arquivo de brasilidade em pleno funcionamento.
Essa dimensão poética e emocional, sem forçar a barra, como se dizia, foi ponto alto do formato do programa. Houve uma diminuição saudável da estratégia já desgastada dos depoimentos externos, limitados ali a uma ótima apresentação dos filhos de Caetano, Gilberto Gil e Djavan.
Heloisa Teixeira, ex Buarque de Holanda, lembrou, no podcast da quatro cinco um, que a geração dos anos 1960, que inventou a juventude, estava agora reinventando a velhice, produtiva e sábia, como atestam, para além das obras, as expressões, olhares e gestos dos dois irmãos no palco. Para além do catálogo e da memória, celebra-se o fato de Caetano e Bethânia, na sua idade madura, continuarem inspirados e inspiradores.
E o espaço da televisão se torna materialização da rede de recados no tempo e espaço que tem feito da música brasileira o que ela é. Uma carismática menina baiana tocou, ao piano, “Leãozinho”, de Caetano, um dos pontos altos da festa. Conectados à força e dinamismo de nossa cultura popular, como demonstram a ponte entre Caetano, Bethânia, Paulo Vieira, as crianças. Esperança de que novas linguagens e novos formatos atualizam a relação entre a música, a televisão e a cultura brasileira. Mion e sua equipe estão abrindo caminhos e eles se encontram, paradoxalmente, na memória.
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Pedro Varoni é jornalista e professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSCar.