Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

É tolerável uma intervenção estrangeira no STF?

Os ataques do bilionário Elon Musk, dono da rede social Twitter, agora X, ao ministro do STF Alexandre de Moraes provocaram uma crise no Brasil, qualificada nas redes sociais como uma nova tentativa de golpe do clã Bolsonaro, desta vez apelando a uma intervenção estrangeira. Essa crise teve repercussão internacional e revelou as dimensões incontroláveis do canadense-sul-africano, cuja ambição parece a de ser dono do mundo.

Teria Elon Musk lido demais histórias em quadrinhos, quando adolescente, a ponto de se julgar agora um super-herói capaz de impor a liberdade no mundo, ou muito ao contrário, um super-vilão empenhado em impor sua vontade no mundo das high techs, e de iniciar mesmo a colonização do nosso sistema planetário e, a seguir, das galáxias?

Faz algum tempo, lendo nos jornais e revistas o surgimento e as ambições do filho de Errol Musk, promotor imobiliário que ficou milionário com sua participação na exploração de minas de esmeraldas na Zâmbia, me veio essa imagem de Musk, o dono do mundo. Bem no estilo dos comics e seus super-heróis, nos gibis ou revistas de histórias em quadrinhos, nos tempos já remotos das bancas de jornais.

Imagino o jovem vivendo sua infância e juventude nos condomínios fechados com os afrikaners sul-africanos. Seria conivente ou contrário à exploração dos negros pelo apartheid? Em todo caso, suas leituras aumentaram seu desejo por aventuras e foi isso que o levou a se expatriar para o país de sua mãe, o Canadá, ao terminar o colégio. De lá para os EUA foi um pulo, com a vantagem de se livrar do serviço militar. A riqueza não impediu seu interesse pelos estudos e seu currículo é excelente.

Mas, em 1995, Musk toma consciência do rápido desenvolvimento da internet e deixa de lado uma bolsa de estudos para um doutorado, em Stanford, nos EUA, sobre física energética, para lançar sua primeira empresa. Esforçado, interessado em tudo, ambicioso, isso e mais algumas coisas, Musk era desde criança. Com apenas 12 anos tinha imaginado um videogame ou jogo de tiros, no estilo de Invasores do Espaço, vendido para uma revista especializada em computadores e tecnologia.

Começa uma série de empreendimentos de sucesso na área de logiciais, computadores, banco online e se lança no setor de mísseis e foguetes com vistas ao transporte para o planeta Marte, onde sonha em iniciar a colonização e nutre a ambição de começar viagens espaciais. Seus projetos audaciosos incluem carros elétricos e inteligência artificial. E sua compra do Twitter, agora X, foi dentro dessa ambição de interligar o mundo e suas populações. Nessa área criativa de projetos audaciosos, Musk é imbatível.

Mas, infelizmente, nobody is perfect – ninguém é perfeito –, e Musk, na vida real, não é nenhum Superman ou Captain Marvel das revistas em quadrinhos. Essas personagens míticas, surgidas a partir da Primeira Grande Guerra, numa fase de depressão e descrença, embora sejam irreais, supriam o desejo ou a necessidade humana de crer em seres superpoderosos, com atributos antes só atribuídos a Deus.

Por falar nisso, esses super-heróis eram de esquerda ou de direita? Fui procurar uma resposta na imprensa francesa, considerada uma das mais cultas de formação e das mais independentes. E encontrei dois especialistas – Camille Baurin, autora de uma tese sobre os super-heróis contemporâneos, e William Blanc, autor do livro Super-heróis, uma história política!.

William Blanc nos conta terem sido imigrantes judeus os criadores desses super-heróis. Os criadores de Superman foram os judeus Siegel e Shuster “não para fazer um super-homem, mas para dizer sobretudo que um dia a humanidade chegará a um homem melhor, graças à ciência e tecnologia, meio social, meio político e essa utopia é encarnada no Superman.” Por sua vez, para Camille Baurian, o herói Batman é reacionário, enquanto tem a máscara, mas como Bruce Wayne, tem uma consciência social mais desenvolvida. “Capitão América, que foi combater os nazistas, antes mesmo dos EUA entrarem em guerra, personifica os patriotas”. Mas que patriotas? Donald Trump e seus seguidores?

Porém, voltando a Elon Musk, talvez a constatação de ser dotado provavelmente de um alto QI (Quociente de Inteligência), o que lhe dá uma sensação de autossuficiência e superioridade sobre a maioria, além de possuir uma das maiores fortunas no planeta, pode lhe dar a sensação de ter sempre razão quando diz alguma coisa e de ter dificuldade em aceitar ser contrariado ou retorquido. Mas isso não lhe transforma num super-herói, embora possa querer agir como se fosse. Aqui é importante lembrar o publicado há três anos pelo jornal francês Le Figaro, com base no Washington Post – “Elon Musk, revela que tem o síndrome de Asperger, uma forma de autismo, declarando: Eu sei muito bem que, às vezes, eu digo ou publico coisas estranhas, mas essa é a maneira como trabalha meu cérebro”. A revista francesa Le Point completou que Musk “lamenta que seus dizeres possam ser, às vezes, mal interpretados”.

Seria o caso das críticas feitas por Musk ao ministro Alexandre de Moraes, repercutidas com as respostas do ministro brasileiro? Não, essas críticas foram de fundo político e revelam convicção pessoal. E muita gente tomou um susto ao ver o jornalista Glenn Greenwald concordar com parte das críticas de Musk ao ministro do STF, numa entrevista no começo da semana no Uol.

Ora, Greenwald não é de esquerda e, pelo jeito, não percebeu a diferença fundamental entre a estrutura política judiciária norte-americana, onde Donald Trump, considerado responsável pela tentativa de golpe do 6 de janeiro no Capitólio e alvo de diversos processos, pode continuar como candidato à presidência dos EUA. Mesmo porque Trump, enquanto presidente, colocou na Suprema Corte norte-americana três ministros conservadores, que lhe são fieis. Ou seja, os EUA terão provavelmente a reeleição de um presidente not clean, cuja provável vitória assusta a União Européia. No caso de obrigatoriedade de processos antes de decisões de Alexandre de Moraes, como defende Greenwald, os bolsonaristas e Elon Musk, o Brasil teria vivido um caos antes e depois do 8 de janeiro, e talvez vivêssemos hoje uma ditadura bolsonarista.

Enfim, é aceitável o dono de uma big tech, Elon Musk, insatisfeito com intervenções nas redes sociais do X, ex-Twitter, divulgadoras de fake news, insultos e ameaças, tentar intervir na política e no Judiciário do Brasil, incitando bolsonaristas a pedirem, no Senado, o impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes? Que poder pensa ter Elon Musk? Elon Musk, considerado pela revista Jeune Afrique “como o porta voz da extrema-direita europeia”, definição seguida pela imprensa europeia.

Pior ainda, é aceitável a moção de aplauso e louvor ao empresário Elon Musk, da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, aceitando e se curvando diante de uma intervenção estrangeira num órgão de representação política brasileira? É aceitável o Senado debater com o interventor estrangeiro sobre as medidas adotadas pelo STF? Entre as muitas reações na imprensa, Reinaldo Azevedo, no Uol, considerou essas duas decisões vergonhosas e se reportou ao marechal Pétain na França do governo de Vichy, invadida e dominada pelo nazismo, como exemplo de sujeição e de vassalagem.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de LisboaCorreio do Brasil e RFI.