Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

E se as páginas de obituário ganhassem relevância no jornalismo?

(Foto: Samária Andrade)

Tive que responder algumas vezes à pergunta: por que você foi ao velório de Nêgo Bispo? De fato, não posso dizer que fui uma amiga do ativista, pensador quilombola e escritor. Sou uma jornalista que o entrevistou, junto aos companheiros da revista Revestrés, e que passou a admirar aquele homem e recebia informações esporádicas dando conta de sua projeção nacional. O líder quilombola piauiense morreu no auge – se é possível dizer algo assim –, pouco mais de dois anos depois que o entrevistamos. Com livro recém-publicado pela UBU, estava entre os mais vendidos desta editora e era o primeiro em vendas pela Amazon, na categoria Ecologia.

A notícia de sua morte foi pauta no Fantástico daquele domingo. Bispo era cada vez mais chamado para proferir palestras em universidades por todo o Brasil. Por conta da entrevista à Revestrés e por minha vida acadêmica, algumas vezes fui procurada por colegas professores interessados em seu contato para essas palestras. Só recentemente ele havia passado a cobrar por essas atividades. Viu o número de convites aumentar. O dinheiro que ia entrando Bispo investia na área de lazer que construía para a comunidade quilombola do Saco-Curtume, onde vivia. Passou mal neste mesmo local e, depois de ser socorrido e ter duas paradas cardiorrespiratórias, morreu aos 63 anos de idade. “Nós, quilombolas, estamos vivendo o melhor momento de nossas vidas” – havia dito à Revestrés.

Mas por que fui ao velório de Nêgo Bispo? Talvez por ter perdido recentemente meus pais (minha mãe já faz oito anos – que susto, sempre parece que foi ontem!). Desde então, a notícia de que alguém morreu passou a ganhar outro significado e tamanho. Ou, talvez, eu tenha ido ao velório porque fiquei comovida – e aqui lembro o sentido original da palavra: comover é mover-se junto a outros. Quando a notícia da morte de Bispo se espalhou, logo fiquei sabendo de alguns amigos que iriam até o Saco-Curtume – esses, sim, amigos-amigos de Bispo.

Tentamos articular uma carona, as combinações foram mudando e terminei indo numa van, com pessoas gentis que eu pouco conhecia. Mesmo sendo bem recebida na van e, depois, na casa de Bispo, a pergunta apareceu a mim também: por que saí de casa na madrugada de uma segunda-feira, 4 de dezembro de 2023, entrei numa van, enfrentei 450 km de estrada e fui ao velório de Nêgo Bispo? Talvez uma terapia me responda. Talvez eu tenha ido para fazer uma matéria. “Uma vez jornalista, é difícil não agir como jornalista”, já disse Matinas Suzuki. O fato é que fui, junto com amigos-amigos de Bispo, generosos em me deixarem participar, escutando histórias sobre ele, ouvindo cantos e o toque do tambor que levavam para celebrar sua vida. De fato, escrevi um texto que saiu publicado na revista piauí. E, de fato, não tinha pensado que faria esse texto.

Naquela tarde quente, por volta de 16 horas, já se aproximavam as cerimônias finais em homenagem ao líder quilombola. Estou sentada em um pequeno tamborete na varanda da casa de Bispo, com um vira-latas manso aos meus pés, quando uma moça se aproxima e diz: “Você é jornalista? Pode fazer imagens para a televisão de Teresina?” Alguém completou: “As redes sociais do Brasil não têm outro assunto”. Não enviei as imagens solicitadas e, depois, soube que as TVs da capital colheram imagens no instagram do próprio Nêgo Bispo, alimentado por uma amiga da família, que usava o novo celular comprado pelo quilombola e que havia chegado somente naquela mesma manhã. Algum colega tinha me visto nas imagens e identificou que havia uma jornalista na cerimônia. Foi quando me dei conta: o homem que comoveu o país naquele dia não havia mobilizado nenhum meio de comunicação a pautar seu velório.


No percurso que fizemos a pé, da casa de Nêgo Bispo até a roça onde ele foi enterrado/plantado, mais uma constatação: apesar da avassaladora repercussão nacional, ali não apareceram autoridades nacionais ou estaduais, nem representantes das universidades, que tanto o requisitavam. Apenas duas coroas de flores foram entregues. Uma terceira, em nome do governador do Piauí, Rafael Fonteles, chegou somente às 21 horas, quando as cerimônias já haviam se encerrado. Avesso aos espaços institucionalizados, é possível que Bispo nem se importasse com essas ausências. Quando lhe perguntavam “por que você é mais reconhecido fora do Piauí?”, tinha uma resposta definitiva e de finíssima ironia: “Porque quem tá precisando me ouvir são vocês, que moram na cidade grande”. Mas comecei a pensar que a pergunta não era “por que eu fui ao velório de Nêgo Bispo” e, sim, porque a mídia, as autoridades, as universidades não foram?
Isso tudo estava um tanto adormecido comigo quando, nesses últimos dias, alguns personagens relevantes da cena cultural e acadêmica do Piauí também morreram. Aqui destaco Elio Ferreira, poeta performático, ativista negro e professor de Letras da Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

Essa notícia comoveu as pessoas, e logo começaram a circular vídeos de Elio interpretando poemas próprios. Em um deles está nos corredores da UESPI, livros em punho, microfone na outra mão, diz quase aos gritos: “poesia, poesia, poesia! Eu pensei que tivesse conquistado o mundo, não fui além do riacho que passava no fundo do quintal da minha casa”. Elio foi bem além. Poemas dele são estudados em faculdades de Letras do Brasil. Nunca deixou de ser um tanto outsider. Para alguns, era o poeta meio maluco que tinha coragem de fazer versos como: “Eu vou comer a tua mãe”, “Todo mundo quer ser deus, e deus é a fome, é a criança morta, deus é teu c*zinho”. Era um estudioso muito sério, inspiração para poetas mais jovens e estudantes.

E o que temos feito quando pessoas como essas ancestralizam? Temos ido às redes sociais e, aos poucos e coletivamente, promovemos uma cerimônia de adeus. No jornalismo brasileiro o texto de obituário é uma seção menor e mal vista. Já no jornalismo de países como Estados Unidos e Inglaterra, essa seção alcançou status de literatura. Os repórteres disputam espaço como obituaristas, assim como, no Brasil e no Piauí, profissionais da imprensa desejam uma vaga na seção de política. Nos bons textos de obituário, além da oportunidade de refletir sobre a vida, devolve-se importância à pessoa reportada. E pouco importa se ela não vai ver esse texto: quem está precisando entender isso somos nós, os que ficam, e não eles, que já fizeram tanto. Como Bispo havia dito: “Quem tá precisando me ouvir são vocês”.
Elio Ferreira morreu no dia 11 de abril, aos 68 anos, enfrentando um câncer. No velório, amigos contavam que ele não se deixava abater e mantinha todos os compromissos, dava palestras, lançava livros. Três dias antes de morrer, já no hospital, participou de modo online de uma banca de doutorado que era defendida em Coimbra, Portugal. Elio encarnava sua última performance. E faz martelar na gente os versos que escreveu ao pai, ferreiro, ofício que ele também exerceu dos nove aos vinte anos: “O meu pai é ferreiro, ele acorda de manhã, bem cedinho, na hora dos passarinhos, o martelo TEM TEM TEM…”

Agora, quando minha pergunta é “e se as páginas de obituário ganhassem relevância no jornalismo?”, penso que os jornais poderiam estar mais vivos do que quando dedicam espaços enormes para páginas políticas – que são muito mais publicidade, assessoria de imprensa, RP, marketing político e muito menos jornalismo.

Texto publicado originalmente em Revista Revestrés, dia 18 de abril de 2024.

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Samária Andrade é doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília), Jornalista, Professora e Pesquisadora de Jornalismo na UESPI (Universidade Estadual do Piauí).