O tempo em que a imprensa alegava saber o que era bom para as pessoas parece ter se transformado num passado longínquo, diante da incapacidade crescente dos jornalistas de transformar estatísticas, fatos e eventos cada vez mais complexos em notícias publicáveis. Uma boa parcela dos profissionais ainda não se deu conta de que a avalanche informativa provocada pela internet e pela digitalização tornou virtualmente impossível a produção de notícias com poucas palavras.
Situações outrora simples, onde uma notícia geralmente se preocupava em destacar o lado bom e o lado ruim dos acontecimentos, ganharam hoje uma grande complexidade por envolverem dezenas de versões diferentes sobre um mesmo fato. Isto obriga os profissionais a terem que mergulhar a fundo no tema a ser publicado mediante pesquisa, entrevistas, checagem de dados, avaliação de contexto factual, identificação do perfil e interesses dos protagonistas, só para citar algumas preocupações editoriais.
Tudo contra o relógio, porque a imprensa é um negócio onde a preocupação em chegar primeiro é um dogma. Qualquer profissional sabe por experiência própria que a pressa é inimiga número um da exatidão e da correta interpretação da realidade factual. Se estas preocupações já eram angustiantes nos tempos pré-internet, agora se transformaram num stress permanente.
Estamos diante de dois modelos de exercício do jornalismo que se atritam como se fossem placas tectônicas em movimento. O modelo convencional tenta moldar o exercício da profissão aos requisitos industriais da imprensa, enquanto a cacofonia informativa nas redes sociais empurra o jornalismo para um sistema ainda desconhecido e, portanto, carregado de incertezas.
Como condensar uma notícia sobre déficit público num título de no máximo dez palavras sem influir na percepção que cada pessoa tem sobre o que está sendo publicado? Este dilema era quase inexistente antes da era digital pela escassez de edições diversificadas de um mesmo fato, dado ou evento. Mas agora, na era da avalanche noticiosa online, é quase impossível seguir o dogma jornalístico da objetividade e isenção absolutas.
Colaboração e ‘fatiamento”
A cultura da simplificação de uma notícia para facilitar a sua compreensão se choca com a complexidade dos elementos que compõem cada informação. Sintetizar situações para ajudar as pessoas a entendê-las é talvez o maior desafio a ser enfrentado pelo jornalismo. Não há como fugir disto e a busca de alternativas vai depender de dois comportamentos que a maioria dos profissionais formados na era analógica ainda não incorporaram ao seu cotidiano profissional.
a) À medida que os profissionais tomarem consciência de suas limitações diante da complexidade na abordagem da realidade, aumentará a necessidade do trabalho colaborativo e do compartilhamento de autoria. O jornalista passa a depender cada vez mais de pessoas que sabem o que ele não sabe;
b) Assuntos complicados, como por exemplo a guerra em Gaza, exigem explicações e contextualizações mais extensas para evitar que a notícia leve a percepções distorcidas. A dificuldade aumenta com a diversificação e quantidade de novos fatos e versões publicados em tempo real. Isto faz com que se torne inevitável o “fatiamento” de abordagem de questões complexas, o que obrigará o repórter e o editor a terem sempre uma visão global do problema para não desorientar o leitor, ouvinte ou telespectador.
A ação conjunta da colaboração (item A) com o “fatiamento” (item B) tende a favorecer o surgimento de um novo tipo de relacionamento entre profissionais e o público. Cada vez mais o jornalismo terá que ser praticado em rede, ou seja, profissionais interconectados para checagem mútua e atualização permanente de notícias, já que o trabalho individual não será mais suficiente para garantir a qualidade cobrada pelo público.
Avalanche informativa anabolizada
A nova realidade enfrentada pelos jornalistas na cobertura diária tende a se tornar ainda mais complicada com a rápida contaminação dos ecossistemas informativos pela inteligência artificial (IA). Entre outros desdobramentos da IA, está a ‘anabolização’ da avalanche informativa, o que significa acrescentar mais zilhões de informações ao já labiríntico ambiente noticioso onde os jornalistas desenvolvem seu trabalho.
Por enquanto, o debate sobre a inteligência artificial nos meios jornalísticos está dominado pela preocupação com uma eventual automação dos processos de produção de notícias. A presença de avatares-repórteres e redações cibernéticas não é uma novidade há pelo menos 20 anos, quando surgiram os primeiros softwares de interpretação automática das oscilações de ações no mercado financeiro.
O que assusta agora é o volume de informações e a valorização dos bancos de dados que terão que ser manejados por jornalistas. Se a complexidade dos ecossistemas informativos onde se movem os jornalistas já é grande, a tendência é que ela se torne ainda maior, sem que seja possível prever até onde ela irá. Tudo indica que o jornalismo tende a se tornar cada vez uma atividade que exigirá uma alta qualificação dos seus profissionais.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.