Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Periferia vista do centro

“Cada vez mais, a periferia toma conta de tudo. Não é mais o centro que inclui a periferia. A periferia agora inclui o centro. E o centro, excluído da festa, se transforma na periferia da periferia”. Essa passagem está num texto do antropólogo Hermano Vianna – “Central da Periferia” – publicado em vários jornais no sábado (8/4) pela Rede Globo. Um anúncio de página inteira.


A julgar pela trajetória recente de MV Bill, não parece ser isto o que acontece nas últimas semanas. Bill, co-autor do documentário Falcão, é o expoente máximo da Cufa (Central Única de Favelas), um dos exemplos de grupo cultural capaz de juntar produção cultural e combate à desigualdade dados por Vianna.


MV Bill, diferentemente do que sugere o antropólogo, está no centro do centro. Entrevistado no Fantástico no dia 19 de março, quando foi exibida uma edição do documentário feita pela Rede Globo. Ouvido naquele fim de semana por muitos jornais e no Jornal Nacional do dia seguinte, em companhia do sociólogo Gláucio Soares, da inspetora de polícia Marina Magessi, do secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e da presidente do Instituto Ayrton Senna, Viviane Senna.


O rapper esteve ainda no programa de televisão do Observatório da Imprensa e no programa de Serginho Groisman, na Globo. Pode ter havido outros eventos, não sei. O momento mais extraordinário dessa presença no centro foi, provavelmente, a ida de MV Bill à Daslu para um debate de lançamento oficial do livro Falcão em São Paulo, o que o levou a ser personagem das colunas de Mônica Bergamo, na Folha, e de Cesar Giobbi, no Estadão.


O repórter Pedro Alexandre Sanches, da Carta Capital, relata na edição desta semana um diálogo à saída do evento na Daslu: “Um mano provoca MV Bill: ´E agora, como você vai explicar tudo isso pros manos?´ ´Não me bota mais essa culpa, não´.”



Sem culpa. Deve-se reconhecer a validade do esforço para mostrar sem estigma retratos do Brasil da periferia. Mas é preciso não levar ao pé da letra o discurso segundo o qual, no dizer de Hermano Vianna, “a periferia não precisa mais de intermediários”. O antropólogo provavelmente acerta ao escrever, ainda que hesitante (seu texto começa com “Não tenho dúvida nenhuma…”; quem não tem dúvida não precisa fazer esse preâmbulo, simplesmente afirma): “A novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país”. Mas se não há necessidade de intermediários (não há?), o que faz aí a Rede Globo? Ajuda ou atrapalha?


O propósito deste tópico não é debater política cultural. Quando a maior rede de televisão aberta do país publica um anúncio de página inteira nos principais jornais para divulgar, ainda que em estilo de manifesto, um novo programa, estamos totalmente dentro do território da discussão sobre mídia.


Outras palavras de Hermano Vianna, bastante críticas, poderiam se aplicar à própria Rede Globo, e mais especificamente ao programa Central da Periferia, primeira edição, sábado, com um adendo apresentado no Fantástico, domingo: “O minúsculo país oficial, mesmo o retratado nos programas mais ´populares´ da mídia de massa, parece uma pequena e claustrofóbica espaçonave, em rota de fuga através de buracos negros, cada vez mais afastado do país, da economia real, da cultura da maioria”.


Nesse primeiro programa, Regina Casé conversou no centro de Recife com Sílvio Meira sobre o Porto Digital, cluster de alta tecnologia. Na região, não existe nada mais central – se se pensa em futuro, não em passado de senhores de engenho – do que o competente Silvio Meira.


No Estadão, a repórter Beatriz Coelho Silva escreveu (8/4): “Num momento em que falcões e infratores parecem onipresentes nos meios de comunicação, Regina Casé aponta o que a periferia tem de bom e honesto”. Engraçado, eu pensava que na periferia 99% das pessoas pudessem se enquadrar, sociologicamente (não em matéria de caráter), nas categorias “bom” e “honesto”.


O D.J. Paulista Eugênio Lima falou no domingo ao Observatório da Imprensa sobre o olhar da Rede Globo: “É o olhar de fora que me legitima e não a minha própria existência. (….) É claro que a gente sabe que esse Central da Periferia tem uma série de restrições editoriais. Não há uma liberdade clara. Você sabe que esse discurso foi editado, foi determinado para parecer palatável em todos os lares do Brasil”.


Lima não concorda com a apresentação em em pé de igualdade de manifestações estética, intelectual e politicamente muito díspares, como o Afro Reggae e o tecnobrega paraense, entre outras citados no texto de Hermano Vianna publicado pela Rede Globo.


Alguma coisa não funciona num programa que se pretende uma “central” e cuja tarefa, como escreveu o antropólogo, seria “amplificar as múltiplas vozes da periferia, para que elas conversem finalmente com o Brasil inteiro”. Persiste aqui a idéia contestável de que a Rede Globo, ou qualquer outro aparelho central, é o instrumento por excelência que nacionaliza, no sentido de tornar nacionais, manifestações culturais brasileiras.


Não se trata aqui, insisto, de discutir propriamente a questão das políticas culturais, mas como a mídia se coloca no processo. Em texto publicado neste Observatório, João Brant, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, escreve: “As emissoras de TV, em sua polarização com as empresas de telecomunicações, tentam nos fazer crer que a defesa de seus interesses é a defesa do interesse nacional. Não é verdade. Ao manter um mercado fechado e com enormes barreiras de entrada, o Brasil sufoca a sua própria criatividade”.


Isso dito, repita-se: é preciso reconhecer a validade do esforço para mostrar sem estigma retratos do Brasil da periferia. Como já havia mérito na primeira versão dessa viagem à periferia, o Programa Legal, lançado em 1999.