Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Se Bachelet fosse homem

Receita fácil – e óbvia – para o prato feito que a mídia em geral começou a oferecer assim que ficou clara a vitória da candidata do governo no segundo turno da eleição presidencial chilena, Michelle Bachelet, ontem à noite:

No Chile, uma das mais machistas sociedades da ainda amplamente machista América Latina – onde, segundo uma lei de 1935, homens e mulheres têm de votar em locais diferentes –, chega à presidência uma mulher separada, mãe solteira do terceiro dos seus três filhos, e ainda por cima atéia, de esquerda e ex-exilada política, cujo pai, um general que se opôs ao golpe de Pinochet em 1973, morreu na prisão, onde foi torturado (assim como a mulher e a própria Michelle.

E mais: não sendo a primeira a assumir o poder pelo voto em um país latino-americano, é a primeira a fazê-lo sem ser viúva de algum líder político nacional, como, no caso mais notório, a argentina Isabelita Perón.

Por fim, é a décima mulher eleita para chefiar um governo em todo o globo [descontado o nome de Sirimavo Bandaranike, viúva de um primeiro-ministro assassinado, que governou o então Ceilão, cujo nome ela mudou para Sri Lanka, durante 12 anos, a contar de 1960, e ainda voltou ao governo nos anos 1990].

Nada contra destacar o ineditismo da eleição de Michelle, com toda a sua dramática biografia, no país dos 17 anos de Pinochet e nesta parte do mundo. Mas é como ela disse diante da indagação sobre quem poderia ser o futuro “primeiro-marido” do Chile: “Se eu fosse homem”, cortou Michelle de primeira, “você não me faria essa pergunta”.

Pois bem. Se o novo presidente chileno fosse um homem, a imprensa daria muito mais importância a dois reveladores fatos eleitorais que se entrelaçam e no mínimo rivalizam com a condição feminina do vencedor:

1) a Concertación, a coligação socialista/democrata-cristã que governa o Chile desde 1990, aumentou a sua vantagem sobre o bloco direitista de oposição – o atual presidente Ricardo Lagos foi eleito em 2000 com 51,2% dos votos, Michelle teve 53,5%. [Só o enviado especial do New York Times, Larry Rohter, baseado no Rio, chamou a atenção para esses números.] Além disso, pela primeira vez, a Concertación obteve a maioria nas duas casas do Congresso (65% das cadeiras na Câmara e 69% no Senado).

2) E, dentro da Concertación, a vantagem, em cadeiras, do Partido Socialista mais o Partido pela Democracia (criatura do PS) sobre os socialistas, na Câmara, aumentou de nove em 2000 para 16, agora; no Senado, onde a DC tinha sobre os parceiros da esquerda quatro assentos de vantagem, hoje tem cinco a menos.

Obcecada pela singularidade da vitória de Michelle, a mídia brasileira deixou de associar a “questão de gênero” ao movimento mais amplo do eleitorado chileno em direção à esquerda.

Pelo menos a Folha de domingo mostrou como era e como ficou a distribuição de cadeiras no parlamento chileno, e o Globo de hoje assinalou que a presidente eleita integra a corrente mais à esquerda no seu partido.

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