Entre 31 de março e 1º de abril de 1964, um golpe militar derrubou no Brasil um governo legítimo e instaurou uma ditadura que durou até 25 de janeiro de 1985. O resto é decorrência.
Em 28 de agosto de 1979, o último general-presidente, João Figueiredo, assinou a Lei da Anistia. O resto é decorrência.
No primeiro caso, para o que aqui interessa, os horrores nos porões da repressão do regime e a resistência – pacífica ou violenta – à opressão.
No segundo caso, para o que aqui interessa, a inimputabilidade dos torturadores e dos participantes da luta armada contra a ordem autoritária, e ainda as indenizações às suas vítimas e familias.
Esses são os fatos pétreos que a imprensa não pode adulterar – como fez a Folha de hoje no editorial ‘O caso Lamarca’, sobre a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça que concedeu a patente de coronel ao ex-capitão do Exército.
Carlos Lamarca aderiu à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), depois ao MR-8, desertou em 1969, assaltou bancos, sequestrou um embaixador e matou pessoalmente um guarda civil com um tiro na nunca e um tenente, a quem tinha feito prisioneiro, a coronhadas. Foi morto em 1971.
Não, como diz o editorial, ‘em combate’, mas executado quando estava indefeso, o que desde sempre foi tido e sabido – como indefesos estavam o guarda e o oficial que ele abateu.
Nem quem o matou, nem ele, se estivesse vivo, poderiam ser julgados por seus crimes, depois da lei da anistia.
A Folha alega que a sua morte ‘é risco natural para quem escolhe pegar em armas’. E emenda, num evidente non sequitur: ‘Por isso o caso de Lamarca não justifica nenhum tipo de ressarcimento da parte de um Estado democrático.’
Não é de acreditar que o editorialista, ou quem mandou escrever o que ele escreveu, deixou de ler o ‘saiba mais’ que o próprio jornal publicou na véspera e que põe o problema em pratos limpos – para todos os fins de direito, como dizem os juristas.
Sob o título ‘Uma decisão de 1996 respalda a promoção’, esclarece:
‘A decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que reconheceu ontem Carlos Lamarca como anistiado político, é respaldada por uma determinação de 1996, quando o governo brasileiro assumiu responsabilidade pela morte do capitão e pagou indenização à família.
Esse pagamento foi feito após a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos entender que, embora Lamarca não tenha sido morto em dependências policiais (como rezava a lei até 2004), mas em campo aberto, estava sob o cerco de agentes do Estado, sem condições de reagir.
Nem a deserção do Exército nem os crimes políticos cometidos por Lamarca entraram em julgamento. Nem no de 1996 nem no de agora.
‘Isso tudo foi apagado com a aprovação da Lei da Anistia, em 1979, que jogou um manto de esquecimento sobre os crimes políticos. Em 1996, a indenização foi pela morte, o Estado reconheceu sua responsabilidade. Agora, a família de Lamarca é indenizada pelos prejuízos financeiros causados pela perseguição política’, disse o advogado Belisário dos Santos Jr., ex-secretário da Justiça de São Paulo.
Desde a decisão de 1996, a família do capitão Lamarca solicitava ao Exército as promoções militares, por tempo de serviço e merecimento, que ele poderia ter recebido se não tivesse desertado, em 1969, e morto, em 1971.’
Não custa repetir: todos temos direito às nossas próprias opiniões, mas ninguém tem direito a fatos próprios.
Em especial os golpistas de 1964, que inventaram que o Brasil estava à beira da comunização, e os seus aliados na mídia, que não se cansaram de repetir a balela.
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