Na última semana, entre os dias 22 e 26 de abril, aconteceu em Brasília a maior mobilização indígena do Brasil: o Acampamento Terra Livre (ATL) 2024, quando cerca de 8.000 indígenas de todo o país demarcaram a capital federal com urucum e jenipapo. A edição especial de 20 anos do movimento teve como lema “nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui”. Apesar de sempre estarem aqui, originários do território, os povos tradicionais historicamente lidam com a invisibilidade da sociedade e, especialmente, da mídia convencional.
A ausência da cobertura de temas de extrema relevância para a sobrevivência cultural, ambiental e territorial da população indígena contribuiu para a manutenção de uma visão deturpada sobre o modo de vida dos mais de 305 povos que atualmente habitam o território brasileiro. O retrato do jornalismo nacional ainda é elitista, e da forma como é feito pela grande imprensa, não favorece o diálogo entre indígenas e não-indígenas no país. Além disso, o uso de uma linguagem estereotipada é fruto de uma construção que a própria mídia criou, a partir da imposição de uma perspectiva de mundo ocidental e da desconsideração da colonização nesse processo comunicativo.
Não é possível mudar a violenta história ocorrida desde 1500, mas será que há alternativas para desconstruir o imaginário perpetuado pela mídia hegemônica, seja na televisão, rádio ou em veículos impressos? Como reescrever a narrativa sobre os povos indígenas no Brasil?
A resposta para essas perguntas, a meu ver, está na comunicação feita por indígenas e para indígenas. Com a ausência de destaque adequado por parte dos grandes veículos, que ignoram questões fundamentais e complexas sobre a realidade nas aldeias, coube aos povos originários a mobilização para serem protagonistas de uma abordagem que respeite sua verdadeira história, cultura e diversidade. Nessa perspectiva, plataformas como a Mídia Indígena, o Portal de Saberes Laklãnõ/Xokleng e a Rede Wayuri desempenham um papel fundamental no compartilhamento autêntico de saberes e demandas das comunidades, quebrando preconceitos e aprofundando o debate na elaboração de políticas públicas que garantam e resguardem direitos constitucionais básicos. 524 anos após o primeiro contato do homem branco, a grande luta dos povos ainda é ter o próprio território demarcado e reconhecido pela “sociedade dominante”, que continua a oprimir e violentar brutalmente o principal valor dos indígenas enquanto guardiões do meio ambiente: o futuro da mãe natureza.
A palavra não é a única maneira de comunicação. A primeira experiência do povo indígena do Brasil em rádio foi ao ar em junho de 1985 (período pós-ditadura e de intensas transformações políticas e sociais): o Programa de Índio, transmitido pela Rádio USP e apresentado por Álvaro Tukano, Ailton Krenak e Biraci Yawanawá. Apesar da importância deste marco para a ampliação do diálogo intercultural, a definição do pensador yanomami Davi Kopenawa sobre o “povo da mercadoria” – que, para ele, são aqueles hipnotizados pelo consumo e que só enxergam na floresta insumos a serem extraídos a qualquer custo – ilustra como os indígenas são vistos pelo restante do país:
“Não há dúvidas de que eles têm muitas antenas e rádios em suas cidades, mas estes servem apenas para escutar a si mesmos”, provoca Kopenawa em seu livro A Queda do Céu.
Assim, acredito que a busca por descolonizar os meios midiáticos parte não só de dar voz aos indígenas, mas essencialmente ouvi-los. Há uma grande diferença entre as duas situações. Para mudar pensamentos reproduzidos por anos na imprensa, os profissionais das grandes redações devem mudar a mentalidade e efetivamente compreender os hábitos dos povos originários, como as práticas ancestrais baseadas na conexão com a natureza e na agroecologia.
O próprio ATL é um exemplo de conquistas sociais e políticas através da comunicação. Nele, indígenas de todo o país têm a oportunidade de produzirem um vasto conteúdo (com uma narrativa autoral sobre a história de seus povos) de reportagens em formato de fotografia, texto, vídeo e podcast. O que pude presenciar durante minha participação no evento em 2023, é algo de uma beleza indescritível: um espaço construído por indígenas, em defesa de visibilidade de pautas indígenas, com cobertura feita (em sua imensa maioria) por comunicadores indígenas. É um espaço não só de protesto, mas de celebração da riqueza cultural, étnica e religiosa de povos de realidades completamente distintas. Uma mistura de pinturas corporais e línguas faladas, da Amazônia ao Sul brasileiro. Apesar da distância geográfica, compartilham entre si a filosofia da ancestralidade.
É preciso falar ainda da ampliação do acesso à informação e da democratização de equipamentos como câmeras e celulares nas últimas décadas, momento em que as redes sociais ganham especial importância como ferramenta de luta e empoderamento dos povos tradicionais. A comunicação, principalmente quando atrelada ao audiovisual e às novas tecnologias, age na ascensão social e na preservação da identidade de cada etnia. Como genialmente destacado em reportagem publicada no portal Farol Jornalismo pela jornalista Ariane Susui, do povo Wapichana, de Roraima, a “comunicação é o arco e flecha do século 21”.
Assim, a etnocomunicação indígena assume o papel estratégico em tornar os povos interlocutores de seus próprios interesses e necessidades. Mais do que um resgate cultural e histórico, é uma forma de quebrar antigos estereótipos causados pela falta de informação especializada na imprensa tradicional e de registrarem por conta própria a destruição das florestas. Nesse contexto, é possível pensar nas mídias alternativas como um espaço de fortalecimento político do movimento indígena e de discussão sobre questões inerentes a essas populações, como o combate ao genocídio, grilagem e mineração em territórios.
Apesar dos notórios avanços obtidos para quebrar essa visão folclórica que se tem do indígena no país, ainda é preciso preencher algumas lacunas e percorrer um longo caminho para que a presença dos povos originários seja normalizada nos diversos espaços da sociedade contemporânea urbana. O fato é: a comunicação indígena dá voz a uma profusão de conhecimentos e realidades ainda pouco conhecidos pelo brasileiro não indígena. Ou melhor, para o brasileiro pariwat, termo usado pelo povo Munduruku para designar aqueles que “não pertencem a esse lugar”.
O futuro (e presente) da comunicação indígena
Nesse processo de reconstrução da história indígena, as vozes dos povos originários ganharam força e autonomia. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), por exemplo, conta hoje com mais de 80 comunicadores atuando nos nove estados da Amazônia Brasileira. Nas regionais da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entidade responsável pela organização do Acampamento Terra Livre, há centenas de indígenas de todo o Brasil que hoje fazem registros fotográficos, vídeos e escrevem.
Conheça coletivos formados e idealizados por comunicadores indígenas:
Mídia Indígena: Uma das maiores redes de comunicação formada por povos originários é a Mídia Indígena (antigamente chamada Mídia Índia). Atualmente com 197 mil seguidores no Instagram, o coletivo de comunicadores indígenas foi em 2015 pelo jornalista Erisvan Bone e outros jovens indígenas do Povo Guajajara, do Maranhão. De lá para cá, o veículo realizou mais de 50 oficinas de texto, fotografia e vídeo para moradores de 69 territórios indígenas de todo o Brasil.
Portal de Saberes Laklãnõ/Xokleng: Considerado uma enciclopédia de preservação da memória e da cultura do povo Xokleng, de Santa Catarina, o Portal de Saberes é uma iniciativa de jornalismo independente, indígena e universitário. Na página, há um rico material de arquivos e registros sobre o patrimônio oral e artístico da Terra Indígena Laklãnõ, no Alto Vale do Itajaí. O coletivo, inclusive, produziu um documentário sobre a história de luta e resistência do povo, chamado Vãnh Gõ Tõ Laklãnõ, que vem rodando festivais e ganhando diversos prêmios, como “Melhor Curta” no Prêmio Canal Brasil e “Melhor Documentário” no Festival de Cinema de Santa Tereza, no Espírito Santo.
Rede Wayuri: Criada em novembro de 2017 e antigamente denominada Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro, a Rede Wayuri é uma mídia coletiva composta por representantes de 11 etnias da Amazônia: Baré, Baniwa, Desana, Tariana, Tuyuka, Piratapuia, Tukano, Wanano, Hup’dah, Yanomami e Yeba Masã. Produzidas pelos próprios indígenas, as informações retratam a vida e a luta das mais de 750 comunidades da região.
Rádio Yendê: Reproduzida por mais de 1.000 ouvintes em cerca de 40 países diariamente, a Rádio Yendê é considerada a primeira rádio indígena online do Brasil. Criada em 2013, através da parceria dos comunicadores Denilson Baniwa e Renata Machado Tupinambá, a mídia tem na programação conversas sobre questões indígenas, denúncias, pedidos de músicas, declamação de poesias, leitura de histórias e até a comunicação direta com diversos povos ao redor do mundo.
Rede Audiovisual de Mulheres Indígenas: Também conhecida como Katahirine (palavra da etnia Manchineri, do Acre, que significa “constelação”), o coletivo é um espaço destinado a fortalecer e visibilizar a produção audiovisual das mulheres indígenas do Brasil e da América Latina. O grupo nasceu em 2023 com a união de 71 mulheres de 32 etnias que atuam nas áreas do audiovisual e comunicação.
Iniciativas destinadas à formação de repórteres indígenas
Vídeo nas Aldeias: O Vídeo nas Aldeias (VNA), projeto criado pelo cineasta Vincent Carelli em 1986, é precursor na formação audiovisual para indígenas. Ao longo desta trajetória de fortalecimento do cinema indígena nacional, o VNA criou um importante acervo de imagens sobre os povos originários do Brasil, com uma coleção de mais de 70 filmes produzidos e idealizados por indígenas.
Agência Pública: Um dos principais veículos de jornalismo independente no Brasil, a Agência Pública tem como uma de suas pautas a formação de comunicadores indígenas e quilombolas. Em 2023, o grupo abriu inscrições para o “Programa de Formação de Repórteres Indígenas”, que distribuiu seis bolsas de R$8 mil para produção de reportagens, além de mentoria presencial na redação da Pública. Além disso, a agência também promoveu microbolsas no mesmo ano para repórteres indígenas de todo o Brasil investigaram as diversas ameaças que hoje assolam os mais de 300 povos originários existentes no país.
Fiquem Sabendo: Plataforma destinada a ampliar o acesso às informações produzidas por órgãos públicos brasileiros, a Fiquem Sabendo está com inscrições abertas para o programa de treinamento gratuito “LAI em Territórios Indígenas”. A Iniciativa tem como objetivos formar lideranças e comunicadores indígenas da região amazônica para o uso da Lei de Acesso à Informação (LAI) e, com o uso de dados públicos, fomentar a produção de investigações colaborativas sobre delitos ambientais ou soluções para preveni-los. As inscrições podem ser feitas até o dia 5 de maio de 2024 clicando aqui.
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Cairê Antunes é graduando em jornalismo na UFSC e bolsista do objETHOS