Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A “desoneração da folha” e o jornalismo em proveito próprio

(Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay)

A cobertura que a sociedade brasileira vem sendo obrigada a consumir sobre a chamada “desoneração da folha” nos leva a questionar que tipo de jornalismo está sendo ofertado. Pessoalmente, arrisco a dizer que seria um “jornalismo de interesse”, no qual os meios de comunicação buscam sensibilizar a opinião pública e, consequentemente, pressionar o parlamento e o governo a conceder o benefício de redução da contribuição previdenciária a um seleto grupo de 17 segmentos da economia nacional, dentre eles, a própria imprensa, em especial as emissoras de rádio e TV. Um jornalismo em proveito próprio.

Essa não seria a primeira vez que isso ocorre na esfera pública brasileira. Para citar um caso mais recente, o processo de privatização das empresas de telefonia e telecomunicações. Como várias das empresas jornalísticas tinham interesse econômico nessa privatização, em especial da Embratel, responsável à época por transmitir os sinais de rádio e TV, a cobertura sempre foi simpática ao processo, mesmo diante das denúncias de irregularidades que culminaram com a demissão do então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros.

Há uns três anos, cotidianamente, a imprensa bate na mesma tecla. E apesar da insistência no tema, a abordagem editorial não é nem honesta nem ampla o suficiente para o cidadão, o contribuinte, e muito menos plural. Em nenhum momento, por exemplo, é dito qual a diferença dos valores a serem arrecadados por um método e pelo outro. A imprensa tão ciosa em reduzir o déficit público, que defendeu reformas previdenciárias que levaram ao arrocho dos trabalhadores, se cala sobre os efeitos dessas regras contributivas no caixa do INSS.

Contrato com o leitor

No jornalismo tradicional existiria um contrato com o leitor estipulando a responsabilidade das informações transmitidas serem autênticas. A noção de “contrat communicationnel”, desenvolvida pelo linguista francês e especialista em Análise do Discurso, Patrick Charaudeau [1], vincula implicitamente o jornalista ao leitor, determina um elo à veracidade, se não à verdade dos fatos, que não se faz presente na publicidade e na literatura. Embora o autor tenha se referido ao profissional, ao indivíduo, creio que a avaliação deve ser estendida ao meio de comunicação ao qual está vinculado, uma vez que trabalha sob normas editoriais, na maioria das vezes, feitas sob medida para atender ao grupo econômico que mantém o veículo em questão.

Na mesma linha, Eugênio Bucci [2], afirma que a atividade jornalística tem como cliente o cidadão, o leitor, o telespectador. Nesse sentido, o jornalista se obriga – em virtude da qualidade do trabalho que vai oferecer – trazer a informação mais transparente e para isso, ouvir, por exemplo, lados distintos que tenham participação numa mesma história. Ouvir todos os envolvidos, buscar a verdade, fazer as perguntas mais incômodas para as suas fontes em nome da busca da verdade é um dever de todo jornalista.

Meu pirão primeiro

Reduzir os gastos com encargos sociais tem sido uma rotina das empresas midiáticas nacionais. Historicamente, muitas delas se apresentam ou se apresentaram, como inadimplentes costumaz para com o INSS. Grandes grupos, como o Jornal do Brasil, Manchete, Gazeta Mercantil, Tupi, dentre outros, ao falirem deixaram rombos impagáveis da Previdência Social – inclusive de valores que foram debitados do trabalhador – e também do FGTS. Sempre se valeram de “criatividade” para burlar essa responsabilidade patronal. Primeiro, foi a eternização dos free lancers, que ganhou a paradoxal alcunha de frelancer fixo. Ou seja, a informalidade permanente. Contrataram via empresas terceirizadas ou cooperativas de trabalho, que comiam parcela importante do salário do profissional. Por fim, investiram na transformação do trabalhador pessoa física em pessoa jurídica, em empresa, mesmo que fosse empresa de uma só pessoa. 

As mudanças de legislação fomentadas pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro trouxeram mais segurança jurídica – termo que a mídia adora – permitindo que esse formato de contrato, até então considerado burla da legislação trabalhista, fosse reconhecido pelo STF. Dependendo das letrinhas do contrato como PJ – que deixa de ser trabalhista e passa a ser de relação comercial -, não haverá direitos tradicionais como Licença Gestante, de Saúde, 13º salário, FGTS, férias e até mesmo limites de jornadas de trabalho e pagamentos de hora extra, ou adicionais noturno, insalubridade ou periculosidade.

Nenhum desses detalhes é exposto pela mídia nacional ao contribuinte-espectador, em especial aos trabalhadores celetistas, que correm o risco de perderem no futuro mais benefícios securitários na hipótese de novo rombo na Previdência. A imprensa que é tão ciosa do chamado controle das contas públicas não revela em quanto isso pode impactar o equilíbrio orçamentário.

Empregos

O argumento pra defender tal benesse é o da geração de empregos e aumento de renda. Mesmo assim, não vem a público quanto novos empregos foram gerados e quanto o salário médio cresceu além da inflação nesses 17 setores, desde a concessão dessa isenção fiscal em 2012. Buscam sensibilizar informando que são os segmentos que mais empregam e ameaçam com demissões ou redução de salários se não forem atendidos. Nesse ponto, a comunicação governamental também falha. Deveria botar os detalhes em público.

Entretanto, a se pegar o setor jornalístico, segundo dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a redução dos gastos previdenciários não resultou em mais empregos ou melhores salários, pelo menos não na mídia. Apesar do benefício da desoneração da folha, o mercado de trabalho formal de jornalistas encolheu 21% em nove anos (2013-2021) Mesmo o espectador mais desatento perceberá que grandes nomes do telejornalismo já não mais estão na telinha. Até nas novelas e na transmissão de eventos desportivos as faces e vozes são novas, algumas até então desconhecidas. Não sei que impacto isso tem dado no Ibope.

Segundo a presidente da Fenaj, Samira de Castro, com base em estudo do Dieese, houve um “um visível enxugamento dos empregos com carteira assinada, sobretudo nos veículos jornalísticos tradicionais”, a chamada mainstream media. Não consegui a variação da renda média do jornalista, no mesmo período. Mas a renda média em 2021 apresentava um rendimento (salários mais adicionais e gratificações) de R$ 5.745,30. Bem modesto para um segmento empresarial que tanto fatura.

Notas

[1] CHARAUDEAU, Patrick. (1997). Le discours d’information médiatique – La construction du miroir social. Paris, Nathan

[2] BUCCI, Eugênio, (2006). Jornalistas & assessores de imprensa, profissões diferentes requerem códigos de ética diferente. In: Observatório da imprensa, Ano 11 – nº 397 – edição eletrônica de 5/9/2006, Disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=397JDB001

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Chico Sant’Anna é jornalista e doutor em Comunicação e Informação pela Universidade de Rennes 1, França