Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Brasil, mediador ou tribunal internacional?

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O Brasil acolheu os ministros de Relações Exteriores do G20 em 21 e 22 de fevereiro de 2024. A reunião terminou sem um comunicado final. Fim de partida atípico para um encontro deste gênero. Apesar de divergências, um “mínimo consensual” é assegurado neste tipo de reunião. Reconheceu-se ter havido troca de opiniões, apesar dos pontos de vista particulares sobre os temas em pauta, e se agendou a sequência desse encontro.

Acasos da agenda diplomática internacional ofereceram ao Brasil oportunidades inesperadas em 2023 e 2024. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse em 1º de janeiro de 2023 e exerceu, representando o país, a presidência do Mercosul, no segundo semestre do ano passado. O Brasil, mesmo não sendo um de seus membros permanentes, presidiu o Conselho de Segurança das Nações Unidas em outubro de 2023. Além disso, de 1º de dezembro de 2023 a 1º de dezembro de 2024, o país foi escalado como encarregado do G20, um fórum estratégico que reúne os membros do G7 e dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Assim, o Brasil acolherá, no Rio de Janeiro, em 18 e 19 de novembro de 2024, a cúpula do G20.

Estas confluências abriram uma janela de oportunidades para um presidente que, durante os seus primeiros mandatos, mobilizou os seus diplomatas para levar o Brasil ao topo da primeira divisão internacional. As escolhas feitas à época, as iniciativas tomadas, enfatizaram, como arma, o diálogo, e a adoção de compromissos multilaterais com diversas regiões. O Brasil tinha conseguido consolidar as suas relações com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, bem como com aqueles do Grupo dos 77.

Tinha participado da criação de uma série de iniciativas de cooperação latino-americana, com a Unasul e a Celac, acordos horizontais entre latino-americanos, africanos e árabes. Tinha conquistado a imagem de um país mediador. Em 2011, por pouco sua tentativa conjunta com a Turquia de encontrar uma saída para o conflito nuclear iraniano, quase deu certo. Apesar do aparente fracasso, foi capaz de convencer quase todos os sul-americanos a reconhecer o Estado Palestino, de modo resolver o impasse no Oriente Médio.

Esta mesma linha de atuação foi então confirmada desde 1º de janeiro de 2023, com o retorno de Lula à presidência. Na América do Sul, o Brasil defendeu a necessidade urgente de desideologizar as relações entre os diferentes países dessa região. Felicitou os presidentes eleitos, fossem eles de direita ou de esquerda. Recusou-se a ostracizar o presidente interino do Peru, como fizeram os seus homólogos colombiano e mexicano. Reintroduziu a Venezuela no concerto regional.

Esta ação foi justificada perante todos os seus vizinhos, que foram convidados a ir a Brasília, em 30 de maio de 2023. Desta forma, com a força do “Consenso de Brasília”, conseguiu neutralizar a potencial deriva militar do conflito territorial entre a Venezuela e a Guiana. Ao mesmo tempo, dissuadiu o Uruguai de se afastar do Mercosul e relançou a cooperação entre os países amazônicos, suspensa há alguns anos, organizando uma reunião da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) em Belém, em 9 de agosto de 2023.

Além disso, o Brasil, apesar da sua recusa em participar da política “ocidental” de sanções contra a Rússia, conseguiu construir uma cooperação social inovadora com os Estados Unidos e restabelecer relações com a Europa, em particular com a Alemanha e a Espanha, que tinham sido prejudicadas durante o mandato do seu antecessor, Jair Bolsonaro. Reafirmando a necessidade de um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, defendeu também a necessidade de consolidar as relações com a China e os Brics. Em junho de 2023, a ex-presidenta brasileira Dilma Rousseff assume a presidência do banco dos BRICS. As questões transversais, em especial a da proteção do meio ambiente e, por oxímoro, a dos combustíveis fósseis, foram objeto de iniciativas que tiveram sucesso. O Brasil vai organizar a COP30 em 2025. Simultaneamente, o Brasil vai aderir à Opep. Por fim, decidiu associar a Unesco à sua presidência do G20, o que nunca tinha sido feito antes. Estes avanços foram saudados. Valeram a Lula um convite especial dos países africanos para discursar no encontro da União Africana na Etiópia, em 18 de fevereiro de 2024.

Esta oferta de tribuna a um orador nato foi talvez um exercício de alto risco. A mediação de 2011 da questão do Irã, embora apresentada em plena crise nuclear, tinha sido longamente preparada com a Turquia. A crise de Gaza, no contexto do discurso de Lula na União Africana, tinha sido objeto de vários comentários e declarações brasileiras condenando o governo israelense. Até 18 de fevereiro, estes comunicados e declarações evitaram qualquer erro verbal, em conformidade com a linha diplomática privilegiada por Lula e Dilma Rousseff, que combina a defesa de princípios com a procura de saídas para a crise. Isto pressupõe a preservação de um espaço de diálogo. A comparação feita pelo chefe de Estado brasileiro entre o genocídio da população judaica da Europa, planejado por Hitler, e os erros cometidos contra a população civil, conscientemente assumidos pelo governo de Netanyahu no território palestino de Gaza, baseia-se numa emoção compreensível. Mas, expressa publicamente, deslegitima qualquer iniciativa do Brasil para mediar esta questão. Terá sido um lapso de coração que forçou a razão diplomática? Ou foi o anúncio de um novo modus operandi por parte do Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil?

Em todo caso, a questão polarizou a opinião pública brasileira. Os opositores a usaram contra Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT). No domingo, 25 de fevereiro, os apoiadores de Jair Bolsonaro, o mau perdedor das eleições presidenciais de 2022 que está prestes a ser condenado por tentativa de golpe de Estado, marcharam pela Avenida Paulista, em São Paulo, com bandeiras israelenses. À esquerda, os apoiadores de Lula, e os mais decepcionados com seus primeiros meses de mandato, aplaudiram as palavras do presidente. Os militantes do PT, escaldados pela negociação imposta pela ausência de maioria parlamentar favorável às ações do governo, também se uniram ao seu líder histórico.

Terá sido esta a intenção? De todo modo, desde 18 de fevereiro, tanto o governo como os dirigentes do PT emitiram uma série de declarações, demonstrando a intenção de retomar a linha diplomática original e de mostrar que as declarações de Lula não equiparavam, de forma alguma, Israel à Alemanha nazista. O G20, já dividido entre os pró e os contra, não foi claramente encorajado por esta tirada verbal, em 22 de fevereiro, a seguir os apelos do Brasil em prol de um compromisso humanitário e político Oriente Médio e na Ucrânia, ou mesmo de uma reforma da ONU, que pudesse abrir caminho para que o Brasil finalmente se torne membro permanente do Conselho de Segurança. Talvez haja uma recuperação dessa influência brasileira? Talvez nos próximos comunicados ao final das dezenas de reuniões previstas até à cúpula em 19 de novembro?

Notas

[1] Texto publicado originalmente em francês, no dia 19 de janeiro de 2024, na seção ‘Actualités, Amérique Latine’ do Site Nouveaux Espaces Latinos com o título original “Brésil, médiateur ou tribunicien international?”. Disponível aqui. Tradução de Thaisa Pinheiro Carvalho e Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, é especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe, e autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).