Sociedade e poder, uma ruptura
Os leitores e leitoras que ainda leem com atenção os principais jornais brasileiros devem estar curiosos com o noticiário pós-eleitoral, que retoma o estilo predominante até o final do ano passado.
Embora o cenário político e os fatos da economia proponham uma grande diversidade de assuntos, pode-se notar que as reportagens, declarações e o conjunto das opiniões selecionadas pela imprensa mantêm um alto índice de convergência, como se as redações combinassem entre si o que vão colocar em destaque.
Mesmo que se saiba que as empresas de comunicação trocaram há alguns anos a concorrência comercial pelo correligionarismo político, ainda chama atenção a grande proporção de coincidências entre temas, interpretações e abordagens, o que torna enfadonho o lazer dos cidadãos que observam as primeiras páginas dos diários enquanto caminham pela cidade.
Com pequenas diferenças nos assuntos regionais, pode-se notar que essa convergência aproxima até mesmo os paulistas O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo do carioca O Globo.
Não. O observador não vai fazer referência ao mitológico PIG – Partido da Imprensa Golpista.
Essa é uma expressão superada pelo desempenho dos principais veículos de jornalismo na última eleição.
A sigla ficou sem sentido porque, ao exagerar na manipulação de fatos reais, factoides, declarações e boatos, as grandes emissoras, os principais jornais e as revistas informativas de maior circulação avacalharam o próprio conceito de partido político.
A imprensa se coloca acima das agremiações partidárias, e agora confronta diretamente os poderes republicanos, sem intermediários.
Aqui e ali, colunistas e editorialistas caem na tentação de referendar o Congresso Nacional na decisão de enterrar a proposta de plebiscito encaminhada pela presidente da República.
Ao mesmo tempo, articulistas tartamudeiam ao digerir o aumento da taxa básica de juros, que eles mesmos vinham reivindicando.
Por outro lado, evidencia-se que os jornalistas lotados em Brasília não possuem suficiente intimidade com o Planalto para fazer apostas sobre a futura composição do ministério no segundo mandato de Dilma Rousseff.
"Petralhas" e "tucanalhas", uni-vos!
Enquanto isso, a presidente sai de cena para o período regulamentar de férias, deixando para trás a inevitável carnificina da luta por cargos no governo.
Lança como iscas dois projetos natimortos: a proposta de plebiscito para a reforma política e o decreto que propõe a regulamentação dos conselhos consultivos.
No futuro, ela poderá dizer que a oposição e o PMDB, em seu papel tradicional de aliado objetor, se uniram à mídia tradicional para enterrar uma das principais bandeiras dos protestos que paralisaram as grandes cidades do País em 2013.
Se os manifestantes voltarem às ruas nos próximos meses, haverá menos espaço para a infiltração de bandeiras reacionárias, como aconteceu no ano passado.
Então, estará criada a possibilidade de uma convergência na sociedade que se dividiu entre duas candidaturas, mas que guarda uma agenda comum a ser cobrada das instituições políticas.
Por isso, apenas alguns poucos alienados ainda manipulam xingamentos como "petralhas" e "tucanalhas" para se referir aos desafetos ideológicos: muitos que se expressam nas redes sociais já percebem a chance de uma coalizão civil por cima dos partidos e da imprensa, com mais clareza sobre o que realmente interessa mudar.
Seria preciso realizar um estudo mais aprofundado, mas pode-se suspeitar que a mídia tradicional perdeu influência sobre a sociedade, apesar de quase ter produzido uma reviravolta na eleição presidencial com a manobra criminosa gerada na revista Veja.
Há evidências de que a imprensa fala diretamente a uma pequena fração da vida civil, pela qual tenta influenciar a maioria, e interage basicamente com o campo político e econômico institucional, ou seja, com o sistema de poder.
Essa fração da sociedade abriga o núcleo do pensamento reacionário.
Se há, como indica o mapa dos votos, uma divisão entre ricos e pobres, entre sulistas e nortistas, a imprensa hegemônica tem grande responsabilidade, por apostar na radicalização do discurso político para influenciar o resultado das urnas.
Mas há uma ruptura ainda mais evidente entre a sociedade, que em sua maioria preconiza mudanças no sistema de poder, e o sistema de poder, que resiste às mudanças.
Apesar de interpretar o papel de mediadora entre a sociedade e as instituições, a imprensa, como sempre, escolheu o status quo, ainda que a circunstância política não lhe seja favorável.