Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Guerra Civil e Secessão nos Estados Unidos

Começamos nos referindo ao filme de Alex Garland, Guerra Civil, mesmo porque um dos atores principais é o ator brasileiro Wagner Moura e por mostrar um grupo de jornalistas acostumados com coberturas perigosas em busca de um furo. Mas principalmente por tratar de um risco iminente: o de uma verdadeira guerra civil começar nos Estados Unidos, depois de novembro. O próprio Donald Trump reforçou essa probabilidade numa de suas frases pronunciadas ao sair do julgamento, a que está sendo submetido por seu gosto pelo sexo pago, fraqueza que não incomoda seus seguidores fundamentalistas.

O filme, cujo roteiro já havia sido escrito há quatro anos, acabou se beneficiando do atraso da produção causado pela pandemia de Covid, e estreou em plena polarização da política norte-americana, quando pelo menos dois livros já haviam tratado de uma secessão nos EUA. Quem leu os livros ou acompanhou as entrevistas concedidas por seus autores saiu frustrado com o filme, onde não existe nenhuma informação sobre a origem da guerra nem sobre quem são os contendores e porque estão se matando.

Não é um filme no qual existe debate de ideias, mas apenas ações, no caso tiroteios, bombas, helicópteros e o trajeto do carro no qual viajam os jornalistas, de Atlanta a Washington, em meio a destruições e riscos. Vão tentar uma entrevista com um presidente prestes a ser deposto, num terceiro mandato inexistente na realidade americana, onde também seria improvável uma anunciada união entre Califórnia e Texas.

Deixando de lado essa ficção guerreira, da qual não se sabe quais as razões determinantes, vamos ao risco real contado no livro A Próxima Guerra Civil!* pelo canadense Stephen Marche, bem sintetizado por ele mesmo nas entrevistas concedidas por ocasião do lançamento. Com um adendo: o livro foi escrito antes da atual guerra de Israel contra o Hamas e da impressão dominante de uma próxima vitória do ex-presidente Donald Trump contra Biden nas eleições de novembro nos EUA.

O autor nega ser um livro de ficção, mas um ensaio de antevisão baseado em documentos, entrevistas com políticos de tendências diversas inclusive milicianos da extrema-direita, militares, funcionários do serviço de informação, agentes do FBI etc.. São fatores determinantes do atual clima de polarização a conspiração política, a politização da Corte Suprema, o declínio das instituições, o surgimento do supremacismo branco e a transformação do fundamentalismo religioso evangélico em força política de extrema-direita.

De acordo com Stephen Marche, já existia um clima de tensão política na posse de Trump em janeiro de 2017 com a presença de líderes de grupos extremistas como os Proud Boys e os Oath Keepers. Esse clima se agravou e teve uma primeira explosão na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, na tentativa dos seguidores de Trump de impedir a diplomação dos eleitos a pretexto de fraude eleitoral.

Outro sintoma foi a anulação pela Suprema Corte, em 24 de junho do ano passado, da decisão no caso Roe x Wade em 1973, que permitia às mulheres abortarem durante os três primeiros meses da gravidez, abrindo o caminho para uma severa proibição total do aborto por um grande número de Estados norte-americanos.

Os grupos de extrema-direita bem armados acreditam em teorias delirantes como acordos passados pelo governo com extraterrestres e se sentem legitimados por Trump. Neonazistas procuram se infiltrar nas escolas, instituições, exército, polícia, utilizando uma tática de normalização de linguagem.

Para Stephen Marche, a condenação ou não de Trump pela Justiça provocará reações. No caso de condenação e prisão, 40% dos norte-americanos o considerarão como um prisioneiro político.

Desintegração dos EUA

O autor novaiorquino Douglas Kennedy não prevê exatamente uma guerra civil, mas massacres e movimentos de populações dentro do atual território até uma separação por muros dos Estados, com nomes diferentes: Confederação Unida, uma ditadura religiosa digna da época da Inquisição, e a República Unida, com um sistema de vigilância tecnológica ultra avançado.

O título do livro é Et C’est Ainsi Que Nous Vivrons**, mostrando os EUA geograficamente separados, com o sul conservador, evangélico e fiel às leis bíblicas a ponto de queimar na fogueira quem não as cumpre. E o norte democrata vivendo num mundo controlado. Os dois países vivem em luta e se espionam.

Numa entrevista, Douglas Kennedy conta como teve a ideia do livro num jantar com um colega de universidade, agora um golden boy de Wall Street, rico e progressista, favorável aos movimentos feministas e gays. Falaram sobre a Suprema Corte fundamentalista com os novos ministros nomeados por Trump e que iriam acabar com o aborto nos EUA, como aconteceu. E num certo momento, o amigo disse não suportar mais o conservadorismo e reacionarismo desses bandidos do Midwest que querem decidir o destino de todos e acabar com o modo de vida laico. E ajuntou – “um dia desses vamos parar de subvencionar essa gente e nos divorciaremos!” 

Para Douglas Kennedy existem dois EUA que se detestam, e num de seus livros, No País de Deus, ele conta uma viagem aos Estados do Sul, o chamado  “cinturão da Bíblia”. Para seu livro, chamado por alguns como história de espionagem, ele escolheu o ano de 2045 para a secessão norte-americana, cem anos depois da vitória sobre o nazismo e do começo do domínio global norte-americano. Para ele, a eleição de Trump em 2016 marcou o início do fim do domínio americano, do qual a China acabará se aproveitando com a retomada de Taiwan.

Ainda sobre Trump, o escritor acha alucinante e surrealista ser Donald Trump, “um bandido e um gângster”, o favorito para as eleições de novembro. Mas isso, segundo ele, deriva da falta de educação do povo alimentado pelo mundo alternativo da Fox News. Apenas 20% leem jornais e recebem boa instrução, enquanto a educação pública e a cultura foram desvalorizadas depois da ofensiva contra o Estado por Ronald Reagan.

Ao concluir, não posso deixar de ter visto muita coincidência com a situação brasileira, não quanto a uma guerra civil, talvez desejada pelos patriotas bolsonaristas, porém no risco de uma secessão por alguns Estados do Sul. Entretanto, isso talvez será evitado com a tragédia ambiental atual, que reforçará a união nacional e talvez acabe com a predominância do negacionismo quanto às mudanças climáticas, mudando o quadro político na região, apesar da pressão mentirosa das fake news. Os EUA tiveram o 6 de janeiro, nós tivemos o 8 de janeiro, tanto lá como aqui no Brasil a extrema-direita se reforçou ao se unir com o fundamentalismo religioso. Uma diferença fundamental, que nos salvou: o Supremo Tribunal Federal permaneceu independente, ao contrário do ocorrido nos EUA. Mas uma ameaça existe: a bancada evangélica entrou com uma proposta de emenda constitucional junto ao presidente da Câmara Arthur Lyra, para ser proibido todo tipo de aborto, mesmo no caso de incesto e estupro.

Notas

* The Next Civil War, by Stephen Marche, Simon & Schuster UK, tradução portuguesa pela editora Livros Zigurate

**  Et C’est Ainsi Que Nous Vivrons, par Douglas Kennedy, Édition Belfond – sem tradução portuguesa.

*** Entrevistas com Stephen Marche e Douglas Kennedy no jornal suíço Le Temps e outros

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.