Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Jornalismo de soluções e os refugiados climáticos

(Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)

Passada a fase da mobilização para salvar pessoas e ajudar sobreviventes da enchente no Rio Grande do Sul, o jornalismo defronta-se com um novo e não menos complexo dilema que é o seu envolvimento na reconstrução das áreas atingidas pelas inundações. O desafio é resolver a situação dos 540 mil “refugiados climáticos” que estão em abrigos temporários e as perdas sofridas por 43 mil empresas onde 740 mil trabalhadores estão ameaçados de desemprego. Isto sem falar nas lavouras, aviários e rebanhos inundados em 336 municípios (67,7% do total) gaúchos.

Num quadro tão sombrio e perturbador como este, o jornalismo tem uma contribuição inovadora para sanar, ou pelo menos reduzir, os efeitos da tragédia no Sul. É o chamado “jornalismo de soluções”, uma modalidade de prática jornalística preocupada em produzir notícias e informações capazes de ajudar as pessoas, instituições privadas e governos a acharem as melhores soluções na reconstrução das áreas e populações atingidas por flagelos, como o que afetou o território gaúcho este mês.

A tragédia das enchentes criou o contexto adequado para a inserção do jornalismo de soluções na agenda dos profissionais da imprensa e da comunicação porque permite um novo tipo de abordagem positiva na cobertura de desastres naturais. A modalidade já é praticada rotineiramente em países como os Estados Unidos, onde é ensinada em algumas faculdades de comunicação (1), mas aqui no Brasil este tipo de enfoque construtivo de problemas sociais e econômicos graves ainda é pouco conhecido. Segundo o Solution Journalism Network, uma rede privada de organizações praticantes do jornalismo de soluções, cerca de três mil profissionais norte-americanos já foram treinados nesta modalidade.

Pessimismo x solidariedade 

A principal característica do jornalismo de soluções é a preocupação em complementar o noticiário de impacto, também conhecido pelo jargão hard news, com a oferta de dados, fatos e propostas visando solucionar os problemas que ameaçam a segurança e a sobrevivência de pessoas ou comunidades. Não se trata de substituir uma modalidade por outra, porque na verdade o jornalismo de soluções e o noticiário de impacto funcionam como um continuum. Para achar soluções é preciso conhecer a dimensão do problema. 

Mas existem diferenças claras e relevantes. O jornalismo de impacto tende a destacar o lado mais dramático, negativo e pessimista das notícias, o que gera uma sensação de impotência e resignação entre as pessoas. Estas características aparecem com maior clareza na cobertura de grandes tragédias. Já o jornalismo de soluções está diretamente associado a buscar saídas e alternativas para os dilemas e desafios, logo promove comportamentos mais positivos, solidários e propositivos. Uma modalidade de jornalismo enfatiza o que está sendo feito para resolver o problema, enquanto o hard news se limita a descrevê-lo (2).

Outra diferença importante se refere à preocupação com a objetividade na produção de notícias. O jornalista envolvido na busca de soluções tem a objetividade como uma meta e não pode partir do princípio de que sua função é provar que uma determinada solução é a única válida. Sua contribuição é colaborar para que a comunidade chegue a uma solução adequada por meio da consultoria, curadoria e tutoria. Se o profissional emite um parecer sobre uma solução, ele passou a ser um membro da comunidade e não um jornalista. 

A história recente do jornalismo mostra que a opção entre o foco no factual e a preocupação com as soluções não é uma escolha simples e nem fácil. Há toda uma inércia a ser superada no desenvolvimento de novas estratégias de produção de notícias. O jornalismo de impacto está apoiado numa estrutura econômica e financeira para a produção de informações. O sensacional e o espetacular atraem público, logo incentivam e alimentam tiragens e publicidade e, consequentemente, a lucratividade de empresas e profissionais autônomos.  Com o passar dos anos, as pessoas acabaram se acostumando a este tipo de descrição de dados, fatos, ideias e eventos, o que levou a associar jornalismo com narrativas impactantes, extraordinárias ou desestabilizadoras.

Por que o jornalismo é essencial na reconstrução

O jornalismo de soluções, ao não priorizar o sensacional, assustador e impressionante parece aborrecido ou desinteressante porque contraria hábitos e expectativas incorporados durante quase dois séculos à cultura informativa da sociedade analógica.  Introduzir novos comportamentos associando a notícia à busca de soluções para dilemas sociais, políticos e econômicos exige dos jornalistas uma preocupação com a educação do público visando mostrar a necessidade de sua participação nos processos de reconstrução de cidades, empresas e estruturas comunitárias.

No contexto atual das enchentes no Rio Grande do Sul, o admirável movimento de solidariedade surgido em torno dos “refugiados climáticos” no Estado cria um ambiente ideal para que o jornalismo e a imprensa promovam a reconstrução de vidas, empregos e propriedades como uma continuidade inevitável de todo o esforço para resgatar pessoas atingidas pela tragédia. A população que sofreu o impacto das inundações possui um conhecimento tácito (3) da origem e desenvolvimento da tragédia. Ela sabe, por experiência própria, como a inundação se desenvolveu, o que lhe dá um conhecimento insubstituível na busca de soluções. 

Cabe a repórteres, editores, produtores de imagens e sons formatar o conhecimento tácito de moradores desalojados em cidades como Eldorado do Sul, Muçum e Estrela para torná-lo compreensível e relevante para todo o público. Ao mesmo tempo, o jornalismo precisa traduzir para a linguagem corrente conhecimentos técnicos de especialistas em engenharia, urbanismo ou meio ambiente. Trata-se de uma função insubstituível porque os jornalistas têm a experiência necessária e única sobre como promover a comunicabilidade de dados brutos e informações complexas.  Sem a mediação do jornalismo fica difícil a troca de conhecimentos entre as vítimas de uma tragédia e os técnicos que sabem como superá-la.  

A parceria entre jornalismo e o público, quando baseada no respeito mútuo e na busca coletiva de soluções, tende a aumentar a confiança recíproca, conforme mostram estudos realizados após a tragédia do furacão Katrina, que inundou a cidade de Nova Orleans, nos Estados Unidos, em agosto de 2005. Hoje se sabe que a confiança mútua (4) é o principal antídoto contra a proliferação de notícias falsas, boatos e desinformação, que tanto dano causaram ao esforço governamental e privado na ajuda às vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.  

Notas

[1] A Oakland University é um dos casos citados pela Solutions Journalism Network.

[2] Ver artigo de Karen Mcintire – SOLUTIONS JOURNALISM The effects of including solution information in news stories about social problems

[3] Conhecimento tácito é o conhecimento intuitivo, aquele que as pessoas têm mas não sabem explicá-lo. Um jardineiro sabe que sem rega uma flor morre, mas não consegue explicar o porquê, ao contrário de um agrônomo ou botânico.

[4] Sobre o papel da confiança ver também em The relationship between solutions journalism, narrative transportation, and news trust https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1464884919876369