Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Louvores e adjetivos exuberantes

Se é verdade, como nos adverte Alberto Dines na edição nº 306 deste Observatório, que ‘a proximidade do narrador com o objeto da narrativa não a invalida’ [veja abaixo remissão para o artigo ‘Biografia é o quente’], certamente é também verdade que, em alguns casos, essa proximidade transforma a narrativa num interminável repetir de louvações onde não há qualquer sinal de distanciamento crítico do objeto narrado. Esse é, de forma mais do que evidente, o caso da recém-lançada biografia de Roberto Marinho escrita por Pedro Bial e publicada por Jorge Zahar Editor como mais um volume da coleção ‘Memória Globo’.

À exceção daqueles que façam parte do grupo de admiradores incondicionais do biografado, é difícil supor que o mais ingênuo e desinformado dos leitores não notará, ao longo das quase quatrocentas páginas de papel couché, fartamente ilustradas, que o autor teve o cuidado inequívoco de invariavelmente tratar todos os episódios descritos na perspectiva de que Roberto Marinho era, de fato, um humano muito próximo da divindade. Mesmo que esses episódios fossem, por exemplo, o consumo de drogas, uma tentativa de homicídio, a participação num golpe de Estado, a violação de princípio constitucional ou a infidelidade conjugal.

O próprio autor, apesar de ter encontrado pessoalmente o biografado apenas três vezes, refere-se a ele como ‘Deus’ e ser ‘revestido de aura sobre-humana’. Trata-o, ao longo de todo o texto, como ‘doutor’ – apesar de informar ao leitor de que ele ‘não completou o curso secundário’ – e não poupa o uso de adjetivos como notável, sedutor, hipnótico, sábio etc.

Cultura autoritária

O livro nos faz crer que, durante os anos de ditadura, a Globo foi vítima permanente da censura dos militares e esteve durante todo o período ameaçada de fechamento. Omite, no entanto, o seu papel de legitimação do regime – hoje fartamente documentado em vários estudos. Omite também a assinatura pela Globo, em 1973, de um protocolo de autocensura com a TV Tupi; a existência de um censor interno, ex-chefe de censura do estado do Rio de Janeiro, funcionário regular da Globo, a partir de 1968; e que a censura na Globo existiu mesmo depois que os militares a eliminaram, em 1980.

A omissão ou o não esclarecimento de certos episódios nos quais Roberto Marinho teve participação é uma das características da biografia. O leitor não encontrará qualquer menção à polêmica apuração das eleições estaduais do Rio de Janeiro em 1982 ou às acusações posteriormente provadas falsas contra o ex-ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel ou a contestada compra da ex-Rádio Televisão Paulista, atual TV Globo de São Paulo.

Por outro lado, não se acrescenta nenhuma informação nova sobre episódios controversos como a participação do biografado na edição do segundo debate entre Collor e Lula nas eleições de 1989 ou das reais motivações que levaram o jornalismo da Globo a ignorar (em nível nacional), por cerca de 90 dias, a campanha das Diretas Já.

Outra característica do livro é o solene desprezo pela produção acadêmica, como já havia acontecido no volume da mesma coleção Memória Globo sobre o Jornal Nacional (Jornal Nacional – A notícia faz história; Jorge Zahar Editor, 2004). Além de ignorar a vasta literatura existente sobre as Organizações Globo, o autor insiste, por exemplo, que a série Anos Rebeldes (1992) teve ‘influência determinante’ nas manifestações de jovens a favor do impeachment de Collor, mas não menciona fortes argumentos contrários a essa posição (cf. Eugênio Bucci em Videologias, Boitempo, 2004).

Da mesma forma, a expressão ‘você sabe com quem está falando?’ é citada em relação aos militares durante a ditadura sem que se indique ser esse um traço permanente da nossa cultura autoritária, expressão de uma sociedade desigual e hierárquica, como estudado por Roberto da Matta há mais de 30 anos.

Poder e influência

Há também uma estranha ausência de fontes que indicam uma interpretação diferenciada de alguns episódios. Por exemplo: quando se discute a intrigante compra da NEC pela Globo, o livro de Mario Garnero não é citado (Jogo duro, Editora Best Seller, 1988). Da mesma forma quando se trata jocosamente da nomeação de Maílson da Nóbrega para ministro da Fazenda no governo Sarney – que teria entrado para o nosso ‘folclore’ político – não se recorre ao próprio Maílson que, em conhecidíssima entrevista à Playboy (março de 1999), descreve em detalhes a participação direta de Roberto Marinho no processo.

Finalmente, o autor parece subestimar a inteligência do leitor. Um exemplo: apesar de afirmar que ‘não há indicação de que o poder tenha subido à cabeça de Roberto’, algumas páginas à frente o autor nos descreve como o biografado deixava um ministro de Estado na sala de espera para, tranqüilamente, atender ao seu alfaiate. E ainda observa que ‘para início de conversa, o senhor ministro já ficava informado de que não era necessariamente mais importante que o alfaiate de Doutor Roberto’.

Em resumo: o livro produzido por Pedro Bial fica muito aquém do que merecia um personagem com o poder e a influência exercidas na vida brasileira por Roberto Marinho, durante boa parte do século passado. Não deixa de ser preocupante que o livro faça parte da coleção ‘Memória Globo’, tão seletiva se revela essa memória.

Não será por isso que já tem gente chamando esta biografia apenas de uma ‘bialgrafia’?

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Professor aposentado da Universidade de Brasília, fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, autor de Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo)