Entre 26 de novembro e anteontem, publiquei três notas sobre o quadro social brasileiro – um assunto que em geral ocupa na mídia espaço inversamente proporcional à sua importância.
Foram eles: ‘Melhorou!’, “A Pnad vista pelos Três Grandes: sim, mas…” e ‘Visão do fundo do poço’.
Hoje volto ao assunto, mas com palavras alheias. Explico.
Dos principais jornais brasileiros, apenas O Globo e o Jornal do Brasil podem ser lidos livremente na Internet. Apenas assinantes têm acesso às edições eletrônicas do Estado e do Valor. No caso da Folha, assinantes do jornal ou dos serviços do UOL.
Ocorre que o Valor publica hoje um artigo da melhor qualidade sobre o social, que merece difusão muito maior do que aquela permitida pelo sistema de leitura paga ou pela compra em banca de um diário de circulação relativamente restrita e, portanto, não disponível em todas as cidades onde este Verbo Solto é lido.
O artigo é da colunista e editora política do jornal, Maria Cristina Fernandes. Chama-se “A gente não quer só comida”. Com perdão pelo fácil jogo de palavras, contém gêneros de primeira necessidade para nutrir reflexões sobre a política e as políticas sociais no Brasil.
Lá vai, pois. Bom proveito.
“Os dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad) confrontados com o Relatório de Direitos Humanos, ambos divulgados nos últimos 15 dias, são elucidativos da disputa entre o PT e o PSDB. Uma vez na oposição, sempre dirão, face aos avanços obtidos pelo outro, que pouco foi feito. É possível e desejável que seja sempre assim. Num ambiente de carência social, tudo que é feito de bom leva à demanda de que se faça mais e melhor.
A Pnad de 2004 veio boa para o governo Luiz Inácio Lula da Silva, mas a pobreza já havia começado a diminuir desde meados da década passada, quando o PSDB chegou a o poder. A violência no campo, a subnutrição infantil nas aldeias indígenas e o desmatamento grassaram no governo Fernando Henrique Cardoso e seguiram incólumes na gestão petista.
Pobreza sempre diminui quando se combina crescimento econômico, inflação baixa e aumento real do salário mínimo, ensina a professora do Instituto de Economia da Universidade do Rio de Janeiro, Lena Lavinas. Mas entre tirar um cidadão da pobreza e oferecer-lhe futuro vai uma enorme distância.
Um quarto da população hoje recebe uma renda extra, quase o dobro do registrado em 2002. Isso foi saudado como feito importante porque é possível que boa parte dessa renda seja de Bolsa-Família. Mas queda da pobreza nesse período, de dois pontos percentuais, deu-se numa proporção cinco vezes menor do que a observada no biênio em que foi implantado o Real.
A relação entre o que é apropriado pelos mais ricos e pelos mais pobres, que vem em trajetória descendente há dez anos, encontrou em 2004 seu ponto mais baixo, numa curva que teve seu ápice no governo José Sarney, a que o PT e o PSDB fizeram oposição.
É verdade que a desigualdade diminui mais pela perda de renda dos mais ricos, especialmente com o achatamento do salário do funcionalismo do setor público, do que pelo ganho dos mais pobres.
Em entrevista ao ‘O Estado de S. Paulo’, o economista Ricardo Paes de Barros recorreu à lei da oferta e da procura para oferecer uma explicação a essa redução na desigualdade. Os salários dos mais bem formados sempre foram muito mais altos do que os daqueles de pouca formação, entre outros motivos, porque havia pouca oferta no mercado. Hoje o contingente de mão-de-obra melhor formada cresceu e forçou uma diminuição no diferencial de salário.
Se a sucessão entre PSDB e PT tem possibilitado essa evolução dos indicadores sociais, sua velada aliança na área econômica também tem impedido que se progrida mais rapidamente.
Em trabalho recente, Lena Lavinas, contrariando o senso comum, mostrou que as famílias em situação de pobreza mais vulnerável não são aquelas chefiadas por mulheres, e sim aquelas formadas por um casal com filhos em que a mulher não trabalha. Ambas são desassistidas pelo Estado, mas as mães solteiras não têm outra alternativa senão buscar trabalho e uma solução privada para a guarda dos filhos pequenos e consegue, assim, safá-los da pobreza de maneira mais eficiente que a mulher casada. Segundo Lena, apenas 2% dos trabalhadores (homens e mulheres) declaram receber alguma ajuda financeira para compensar despesa com creche.
O Bolsa-Família pode ter resultados mais imediatos na redução da pobreza, mas uma política de difusão de creches serviria às famílias que estão na base da pirâmide social como um incentivo de caráter mais permanente para tirá-las da pobreza.
Foi preciso que o ministro do PT mais preservado pelo PSDB, Antonio Palocci, fosse acossado pela CPI dos Bingos para aceitar, durante audiência na Câmara em que até pôs uma criança no colo, que o Fundo para a Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) fosse estendido às creches.
Lula não aceita que sua política econômica seja continuidade do governo Fernando Henrique Cardoso, assim como o prefeito José Serra tem dificuldade de aceitar que o anúncio de que construirá mais CEUs seja visto como continuidade da principal vitrine da gestão Marta Suplicy.
Em meio a essa discussão sobre quem pouco fez e quem fez pouco, o Congresso encaminha-se para votar no afogadilho das barganhas um Orçamento que deixa em aberto a crescente pressão das despesas de custeio da máquina da União, onde está acomodado o Bolsa-Família.
Tanto o atual governo, quanto os tucanos que ambicionam sucedê-lo, querem honrar altos superávits e sobrepujarem uns aos outros na gestão social. No ano passado o gasto com a Assistência Social, onde está embutido o Bolsa-Família, foi de R$ 16,2 bilhões, o dobro do valor registrado em 2001. O gasto social no país só cresce e, ainda assim, parece pouco. Basta comparar com os números colhidos por Lena Lavinas no BID sobre as remessas de quem trabalha fora do país. Esses brasileiros, que em 2004 tiveram como símbolo o mineiro Jean Charles de Menezes, enviaram às suas famílias no Brasil R$ 17,1 bilhões, mais do que o governo gasta com sua principal vitrine social.”
Pela cópia, L.W.
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