Há quatro dias vejo meu nome correr a internet, de Norte a Sul do Brasil, associado a um plágio. Na noite passada não consegui dormir, nem deixei minha filha dormir. Trata-se de um caso sui generis, que combina falta de ética, desinformação/desconhecimento, manipulação e edição de e-mails e uma pitada de maldade, como nas tramas das novelas da Globo. Tudo isso amparado e difundido pela internet, cujo universo, tão particular, penetrei há pouco tempo com o Laboratório Pop
Tecnicamente, explico: a listagem das discografias dos artistas brasileiros ou internacionais está disponível para mim, para você, para o Joaquim e o José, para quem quiser usar. Se você precisar de uma do Caetano, do Gilberto Gil ou do Jobim, basta ligar ou passar um e-mail para a editora responsável pela obra do artista e o atendente da companhia a enviará, toda completa, para seus propósitos. Portanto, a discografia de um artista não é de ninguém, a não ser do próprio e de sua editora.
Pronto.
Explicado isso, à história: em 2000, em longos papos com Guinga, meu amigo há pelo menos 10 anos, propus a ele contar sua trajetória num livro. Um dos maiores compositores da música popular brasileira dos últimos 20 anos, e quem diz isso não sou eu, é Chico Buarque, Ed Motta, Francis etc. Guinga topou. Eu não ganharia um tostão com a obra, a não ser sentir uma grande felicidade por participar da história dele. Em 2001, paralelamente ao meu trabalho como repórter e crítico do Segundo Caderno do jornal O Globo, pus-me a entrevistar artistas, amigos e parentes de Guinga.
Foram aproximadamente 60 pessoas ouvidas, entre eles o próprio Chico, o gaitista belga Toots Thielemans, Lenine, entre outros. Para tanto, contei com a ajuda valiosíssima de Dirley Fernandes, amigo que fez umas 15 entrevistas para o livro e hoje trabalha comigo no Laboratório Pop; com duas repórteres estagiárias de O Globo (que transcreveram as entrevistas); e com o talento do fotógrafo Guto Costa (que fez fotos inéditas belíssimas, muitas, para o livro). Passei pelo menos umas 30 horas entrevistando Guinga, em encontros no Leblon, Zona Sul do Rio. A idéia não era fazer uma biografia, mas uma grande reportagem, com declarações dos entrevistados.
Ao entregar os originais de Guinga – os mais belos acordes do subúrbio à Editora Gryphus, em dezembro de 2002, Ana Montenegro, uma das responsáveis pelo projeto, sugeriu publicar uma discografia (musicografia) de Guinga, ou seja, uma lista com todos os artistas que gravaram suas músicas. Ana Lúcia Borges, a repórter que me ajudava, então estagiária do Globo, conseguiu a listagem na EMI (editora de Guinga) via fax e eu repassei a Ana. Informei-a que Guinga me dissera que a americana Daniela Thompson tinha uma discografia idêntica publicada na internet. Conferi o trabalho da Sra. Thompson em seu blog, dedicado à música brasileira, e mandei-lhe um e-mail de congratulações pelo trabalho. Ana então comparou as discografias, a da EMI e a da Sra. Thompson, que eram quase iguais. O da Sra. Thompson estava apenas mais atualizada em menos de uma dezena de novas gravações. Ana então comandou essa edição da discografia e eu aguardei o lançamento.
Em maio de 2002, o livro é lançado na Bienal do Livro em São Paulo, na Livraria Argumento, no Rio, na Fenarte, em João Pessoa, e numa livraria de Natal. Recebi então um e-mail da Sra.. Thompson reclamando que o crédito de ‘sua’ discografia não havia sido publicado no livro. Mesmo sabendo que discografia é algo público, não é de autoria de ninguém, pedi desculpas e a atendi gentilmente, reenviando o e-mail à editora e pedindo o conserto do ‘erro’ na segunda edição, para evitar problemas. A Sra. Thompson não aguardou a segunda edição e publicou em seu blog todos os nossos e-mails trocados, que foram crescendo em ofensas de ambas as partes, à medida que ela me acusava de desonesto. Acossado pelos absurdos, perdi a cabeça e retruquei os e-mails ofensivos no mesmo nível, esse sim, um erro fatal meu, uma vez que caí em sua rede e rebati provocações e ironias em nível tão baixo quanto o dela.
Minha editora, Gisela Zingoni, interferiu e trocou e-mails com a Sra.. Thompson, garantindo consertar o ‘erro’. Esses e-mails foram também publicados no blog da Sra.. Thompson. Vale registrar que alguns dos meus e-mails foram editados, especialmente o que explico o que adiantei no lead, que a discografia não era dela e que a mesma listagem encontrava-se disponível na EMI. Outro e-mail que ela publica, em que digo que havia pedido a autorização dela para publicar a discografia, simplesmente nunca existiu ou foi manipulado.
Adiante.
Quando vi que o Google registrava o caso, ao digitar meu nome no campo de busca, no começo do ano passado, solicitei a Gisela que visse e que tomasse alguma medida jurídica, já que, como já expliquei anteriormente, discografia não é propriedade intelectual. Ela me tranqüilizou e Guinga também, em papo que tivemos ao telefone na época e que reproduzo aqui:
‘A discografia é minha e de mais ninguém. Deixa isso para lá. Uma hora dessas essa moça esquece isso’.
No dia seguinte, a revista Veja recomenda o livro, com um texto do cantor e compositor Lenine:
‘Mario nos entrega um presente. Uma narrativa deliciosa e íntima, que nos torna próximo desse que é um dos maiores compositores/músicos contemporâneos do mundo… Guinga é ‘Villa-jobiniano’, é Radamés com Pixinguinha, é o violão brasileiro no topo da música…. É saudável e bem-vinda a cumplicidade entre o bom jornalismo e a arte. Mario ter encontrado Guinga, e vice-versa, foi um ganho para todos nós que desfrutamos hoje ‘Os mais belos acordes do subúrbio’.
Fui dormir em paz.
‘Boa sorte’
Quase dois anos depois, ou seja, semana passada, começo a receber e-mails anônimos de pessoas me xingando. A assessora de imprensa Bebel Prates me envia um e-mail me alertando que o caso estava rolando nas listas de discussão na internet como se eu fosse o maior plagiador do universo. Adjetivos como mau-caráter, pilantra, copiador, antiético, vagabundo etc. percorreram blogs e listas de discussão no Brasil inteiro, como se eu fosse um ladrão, um marginal e como se essa história tivesse acabado de acontecer.
Como jornalista, então, fui checar como o caso se espalhou. Foi quando descobri a fonte da condenação pública que tomou conta da internet e da minha caixa de entrada de e-mails. Alexandre Matias, jornalista de Campinas que mantém um blog de música na rede, publicou em seu blog
‘Putz
Quer dizer, PUTZ’.
Ao clicar em PUTZ, o internauta tinha acesso a toda a troca de e-mails entre mim e a Sra. Thompson.
Alexandre Matias me julgara sem me ouvir.
Não entendi qual era a intenção dele fazendo isso, já que é meu colega de profissão e, como jornalista que é, deveria optar pelo princípio básico do jornalismo: ouvir todos os lados de uma história. Mas, refletindo e analisando com calma, cheguei à conclusão de que sua atitude é compatível com o nome de seu blog e de seu slogan: ‘Trabalho sujo – porque alguém tem de fazê-lo’.
Indaguei-o então. Mandei-lhe um e-mail explicando o ocorrido e tentei mostrar-lhe como sua atitude me prejudicara moralmente. Ele desconversou, respondendo:
‘Fala Mario:
Por aqui, indo. Sobre o caso, recebi o link de várias pessoas em menos de um dia e apenas o postei no meu site. Se você quiser, posso retirá-lo. Desculpe-me por qualquer coisa, mas não tive a intenção de te causar problemas.
Abraço
Matias’
Mesmo contrariado com sua resposta, evasiva, pedi que ele me ajudasse, dando a minha versão ao patético caso e retirando o post do ar em seu blog.
No dia seguinte – e até domingo – o post continuou no ar. Ele retiraria o post só no domingo, seis dias depois de ter entrado no ar e de o estrago já estar feito.
Segui adiante.
Em seguida, na quinta-feira (29/1), me chega a seguinte mensagem de um outro amigo meu, reproduzindo nota do jornalista Lúcio Ribeiro em sua coluna na seção Pensata da Folha Online
‘do Rio de Janeiro ainda soube de mais um caso de picaretagem jornalística. Aliás, dois. Um mega, até inesperado. O outro é o de sempre. Puts’.
Reparo que Lúcio Ribeiro usa em sua nota o mesmo PUTS da nota de Alexandre Matias, dando a entender, com uma espécie de código, que reproduz o que seu colega de profissão escrevera em seu blog ‘Trabalho sujo – porque alguém tem que fazê-lo’. De novo fui ao autor da nota. De novo expliquei toda a situação em detalhes, reproduzi um texto a mim passado por um advogado amigo meu sobre a Sra. Thompson, e Lúcio Ribeiro negou que se referia a mim em sua nota, apesar do PUTS e de dizer que o caso de ‘picaretagem jornalística’ era do Rio de Janeiro. Ele se desculpara dizendo que era um caso ‘da Folha’, conforme sua resposta abaixo:
‘Fala, Mário. Tudo certo?
Cara, soube da sua história, mas não era sobre essa pendenga a que eu me referia. Era pior e envolve a ‘Folha’. Não por culpa do jornal, diretamente. Mas no caso do ‘picareta’. Como da outra vez que falei de picaretagem, e envolvia também a ‘Folha’, não dei nomes aos bois. Como não daria no seu caso, porque não conheço a mulher e não sei qual era a história na real (o tal do princípio básico do jornalismo). Na verdade, usei minha coluna para dar um recado pessoal. É péssimo isso, mas tenho esse vício. As pessoas a quem falei SABEM que o recado é para elas.
Agora, ia até falar do Laboratório Pop na coluna, mas me recuso a usar meu espaço para relacionar meu nome com algumas pessoas que estão ali. Você acha interessante dar o seu caso na minha coluna, os dois textos (resumidos)? Acho que não, por não se tratar de um artista que seja conhecido pelo meu leitor. Mas posso dizer que você se sentiu prejudicado com a nota. Você me diz.
abç
lúcio’
Bem, bem, bem… aceitei as explicações do colega de profissão e segui adiante.
Disse ao Lúcio que não precisava responder nada em sua coluna e tudo bem, lembrei-o que nós nos citávamos em nossas colunas sempre com uma dose de ironia, mas nada sério. Ele lembrou de uma reportagem sobre o Caetano que eu e o colega João Máximo assináramos no Globo e que eu não teria gostado de uma nota irônica dele sobre a matéria. Falei que ele (Lúcio Ribeiro) era muito lido na internet e portanto era um formador de opinião, e acrescentei que aquilo poderia me prejudicar moral e financeiramente etc. etc. Lúcio Ribeiro me desejou boa sorte. Bom, não sei o que Lúcio Ribeiro quis dizer sobre ‘algumas pessoas que estão ali’, no caso alguém que escreve para o Laboratório Pop que eu não sei quem é e nem quero saber. Neles confio plenamente, todos de competência e caráter, de todos eu me orgulho.
Perigos da internet
O fato é que depois das notas de Lúcio Ribeiro e de Alexandre Matias virei um plagiador na internet. Autores de blogs como
‘O crítico musical Mario Marques copiou em seu livro trechos de um artigo de Daniela Thompson, gringa especialista no trabalho do músico Guinga. E ele não deu o crédito para a verdadeira autora do texto.
Quando Daniella reclama a falta de crédito, o jornalista fica puto, diz que tem um nome a zelar e que ninguém nunca ouviu falar nela. Ele é famoso e pode se aproveitar do trabalho de quem quer que seja, ainda mais de uma desconhecida como ela.’
Enviei e-mails ao tal Rafa, explicando didaticamente o caso e perguntando que trechos eram esses. Ele não respondeu, nem publicou minhas explicações em seu blog.
E assim está sendo, blogs afora.
Restam-me os que me conhecem.
O jornalista Dirley Fernandes, brilhante texto da imprensa brasileira, manda-me depoimento de apoio, já que trabalhou diretamente comigo no livro de Guinga. Reproduzo abaixo:
‘Já começo plagiando: Meus amigos, meus inimigos… fazem-se muitos, tanto uns quanto outros, dentro de uma redação, na competição pelas melhores informações, na disputa pelas vagas escassas e no choque de opiniões e vaidades. Falar mal um do outro é esporte que todo jornalista pratica. Não merecer ser o alvo de alguns impropérios é coisa que poucos entre nós poderíamos aspirar. Afinal, está mais ou menos assim lá no Hamlet: ‘Se fosses tratar todas as pessoas de acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata?’ Mas acusar um colega de profissão de plágio é coisa mais grave, mas muito mais grave do que fazer pose de malvado.
O principal patrimônio que um jornalista constrói – e, geralmente, o único – é o que ele vai publicando por aí e que torna seu nome conhecido dos leitores. Ao se impingir a ele o epíteto de plagiador, põe-se em dúvida todo o valor do que ele escreveu – todo o patrimônio que ele acumulou. Isso não se faz ao pior inimigo. Claro, toda essa onda cresceu como na velha brincadeira do ‘telefone sem fio’: foi passando de um a outro e um possível caso de ausência de citação devida tornou-se coisa mais séria: uma acusação de desonestidade profissional, falsidade intelectual.
Ajudei Mario Marques a fazer as entrevistas para a biografia do Guinga, autor que ambos adoramos. Foi maravilhoso conversar sobre música com Hermeto Paschoal, Jards Macalé, Carlos Malta e tantos outros… Não colaborei em uma linha do texto final, que resultou primoroso. Essa pendenga já conhecia de longa data; sempre foi comentada como uma espécie de folclore aqui no Rio. Porque a troca e-mails sugere um conto em forma epistolar: a história de uma mala fazendo um cara cheio de dedos ir aos poucos se descontrolando. É (ou melhor, era…) muito divertido. Agora, essa moça dizer que alguém se apropriou da discografia dela. Nonada! A discografia é do Guinga. ‘Copyrighted material’ é o escambau! Fosse eu paranóico como ela, diria: ‘Estão querendo tascar mais um compositor brasileiro’.
Prefiro, no entanto, apenas dizer o que sei: Mario Marques pode não ser todo o tempo uma flor de pessoa, mas é um trabalhador incansável e um jornalista ético. Merece o respeito dos colegas e a solidariedade geral quando é vítima de uma acusação leviana. Falar de plágio não cabe no caso. Faz bem a editora em levar às barras da Justiça quem for por aí. Vai ser irresponsável com o nome da vovozinha!
E que Mario se recupere logo do baque. Temos muito trabalho limpo a fazer aqui no Laboratório Pop, que é movido pelo suor de uma equipe da qual me orgulho muito de fazer parte e que, por si só, já fala do prestígio de Mario Marques entre seus colegas.’
Obrigado, Dirley.
A editora Forense, que comanda a Gryphus, está analisando o caso com o departamento jurídico para saber as medidas judiciais cabíveis à Sra. Thompson, já que é uma acusação sem fundamento e que incorre em danos morais. Em seu blog, a Sra. Daniela Thompson publica e-mails de pessoas no Brasil que aplaudem sua causa. Mas ignora os que recebe de amigos meus, parentes e leitores do Laboratório Pop, que enviaram defesas fervorosas da minha idoneidade. A eles agradeço muito, como Marlon Brum (editor da Rio do jornal Extra, aqui do Rio), que me pôs em cópia num deles e reproduzo aqui, já que também não foi publicado no ‘seletivo’ site da Sra. Thompson. Diga, meu caro Marlon Brum:
‘Cara Mrs Thompson, acho que a senhora não bate muito bem da cabeça. Fui o primeiro a ler os originais de Guinga – os acordes do subúrbio e não há uma linha ali que não seja de uma apuração minuciosa de Mario Marques. Tenho acompanhado o caso e acho que a senhora precisa procurar um psiquiatra com certa urgência. Como é ser dona de uma discografia? A senhora quer nos fazer crer que reúne esse material há décadas, quando ele pode ser encontrado a um passo do telefone, pelos canos da internet ou num ranger do fax no mesmo dia. A senhora acha que discografia é obra artística? Talvez seu sonho seja escrever um livro sobre música brasileira, o que é um anseio legítimo. Mas antes é preciso que a senhora ultrapasse seus limites. Em vez de copiar as discografias brasileiras e vendê-las internet afora como suas e sugar textos de nossos repórteres, comece a escrever textos verdadeiramente seus, entreviste nossos artistas. Comece, enfim, a fazer jornalismo. Porque minha cara senhora Thompson, posar de americana estudiosa de música brasileira não lhe dá o direito de ferir nossos verdadeiros profissionais. Que Deus lhe perdoe.
Marlon Brum’
Aos que acham que o americano é sempre o honesto e o brasileiro, sempre o malandro, peço uma reflexão agora.
Com todos os meus defeitos, pessoais e profissionais, que são muitos, sempre defendi a ética. Muitos amigos me alertaram dos perigos da internet, ao saberem que eu estava debruçado numa empreitada na rede. Há três semanas mantenho o site
E possa trabalhar em paz.
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(*) Jornalista