Até parece que a notícia veio de uma daquelas cidades da América Vermelha (a dos Estados de maioria conservadora, apesar da cor), em pleno Cinturão da Bíblia, que é como os americanos batizaram o arco que vai do sul ao oeste do país, onde o fundamentalismo cristão tange o povo para uma nova noite medieval.
Mas não. Veio de São José dos Campos, 580 mil habitantes, a 92 quilômetros de São Paulo, posto avançado da indústria nacional (sede da Embraer), 11º município paulista (e 37º brasileiro) no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, na marca de 0,849 (equiparável ao da República Checa), 1 milhão de universitários, 4,6% de analfabetos (13,3% no Brasil) e 1,5 leito hospitalar por mil habitantes no sistema SUS (2,8 no Brasil).
E a notícia, merecedora de manchete interna no Estado de S.Paulo, é que a Câmara de Vereadores local derrubou o veto do prefeito ao projeto por ela aprovado no final de março, proibindo a distribuição da chamada pílula do dia seguinte na rede pública de saúde.
A pílula — contraceptivo para ser tomado até 72 horas depois da relação sexual, sob prescrição médica — começou a ser distribuída no país em fevereiro pelo Ministério da Saúde. Cerca de 1.100 cartelas do remédio chegaram a São José. Não sairam das caixas.
Conhecida pelo nome comercial de Postinor-2, a substância é indicada apenas em situações imprevistas: quando a mulher deixou de tomar regularmente o seu anticoncepcional, ou quando a camisinha do parceiro se rompeu, ou para prevenir a eventual gestação provocada por um estupro.
A história da grande cidade do Vale do Paraíba é a primeira do gênero no país — e alarma todos quantos acham que os fiéis de uma religião são livres para fazer o que ela proíbe ou manda, dentro da lei, mas não podem impor obrigações ou proibições a terceiros, nem criar leis que combinem com suas crenças e ignorem os fatos científicos.
Setenta dias atrás, quando o vereador que se faz chamar Lino Bispo, eleito pelo voto católico, apresentou o projeto anti-pílula — sob a alegação de que o medicamento é na realidade um abortivo — a Igreja pôs as suas tropas em campo.
Segundo a reportagem de Simone Menocchi, do Estado, o bispo local mandou divulgar o assunto — isto é, fazer propaganda do projeto — nas missas e fez circular um abaixo-assinado para pressionar os vereadores a aprová-lo.
A proposta passou, o prefeito a vetou, os vereadores derrubaram o veto e o presidente da Câmara a converteu ontem em lei, “mesmo diante de pareceres dos departamentos jurídicos da Câmara e da prefeitura que consideram o projeto inconstitucional”, informa a repórter.
Segundo a Constituição, nenhuma lei municipal prevalece sobre uma norma federal. As políticas públicas do Ministério da Saúde não podem ser descumpridas por autoridades de qualquer nível de governo.
Enquanto os procuradores federais investigam se a Igreja pressionou indevidamente os vereadores, vários advogados se preparam para recorrer à Justiça, invocando a inconstitucionalidade da lei promulgada.
De seu lado, o vereador Bispo diz que quer levar o mesmo projeto à Câmara dos Deputados, pelas mãos da parlamentar petista Ângela Guadagnin — confiante nas suas afinidades doutrinárias com outro baluarte da submissão do Estado à Igreja, o notório Severino Cavalcanti.
Quando o projeto for apresentado, entrará em ação, em escala nacional, o lobby da CNBB. Decerto ele repercutirá na mídia, graças ao engajamento da assustadora organização leiga Opus Dei, cada vez mais atuante no setor, como vem chamando a atenção no Observatório da Imprensa o jornalista Alberto Dines. (Nessa hora, os falangistas da Opus Dei não hesitam em fazer uma aliança profana com o bispado “progressista”.)
O Brasil tem um presidente da Câmara para quem a gravidez produzida por um “acidente horrível”, como ele se refere ao estupro, não deve ser interrompida (ao contrário do que autoriza a lei desde 1940).
Tem um procurador-geral da República — Claudio Fonteles, tão ultramontano quanto Severino — para quem a mulher deve carregar dentro de si até o fim um feto anencefálico, sem cérebro, condenado a morrer logo depois de nascer.
Agora, a mesma Igreja que ao longo dos séculos raramente perdeu ocasião de levar ao fogo hereges, judeus, bruxas e tutti quanti incorriam em sua santa ira, ergue o falso estandarte da “cultura da vida” para impedir pesquisas para salvar vidas e o direito da mulher de escolher se e quando quer ser mãe.
Não é preciso ser agnóstico para saber que os valores humanistas correm em toda parte o risco de serem incinerados no altar do absolutismo dogmático de Wojtila e Ratzinger.
O episódio de São José dos Campos deve servir de advertência: a fronda do retrocesso precisa ser combatida onde quer que tente impor a sua maléfica e ilegítima coação.