Dia de unanimidade nas manchetes:
‘Governo reconhece ´excessos` da PF’ (Folha). ‘Congresso, Judiciário e Lula reclamam de abusos da PF’ (Globo). ‘Ministério vai apurar se PF cometeu abuso na operação’ (Estado).
Excessos e abusos da PF não hão de ser as escutas telefônicas da Operação Navalha. Não se sabe de nenhuma que não tenha sido autorizada previamente pela Justiça.
Não hão de ser tampouco as 48 prisões efetuadas pela PF. Ela cumpriu ordens de um ministro – aliás, uma ministra, Eliana Calmon – do Superior Tribunal de Justiça. Quando a ministra disse não, no caso do governador do Maranhão, Jackson Lago, preso ele não foi. Dos que foram, 35 já saíram, também por ordem judicial, cumprida sem contestações nem corpo-mole.
Até aí, Estado democrático de direito para ninguém pôr defeito.
O que há de errado é público e notório: os muitos vazamentos para a imprensa de trechos de um inquérito que era para correr em segredo de Justiça. Principalmente, de passagens dos grampos telefônicos. Geralmente, para mostrar serviço. Possivelmente, em alguns casos, por vingança: para ferrar com certos grampeados ou com pessoas citadas nas conversas interceptadas. Ou ainda para fazer favor a um desafeto político dos dedurados.
É o que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal, chamou de ‘canalhice’.
Pois bem. Tem um ditado americano que diz que para dançar tango se precisa de dois – ‘two to tango’.
Sem a parceria da mídia, os vazadores não teriam com quem dançar. E a isso, a mesma mídia que mancheteia queixas de ‘excessos’ e ‘abusos’ dá as costas, como se não fosse com ela.
Vamos nos entender: está para nascer o jornalista que deixará de divulgar trechos incriminadores de documentos oficiais, não apócrifos, portanto. Quanto mais sigilosos, quanto mais apimentados, melhor. Foram recebidos de ou garimpados junto a autoridades cujos nomes serão devidamente preservados, conforme as regras desse tipo de acordo tácito de mútua conveniência.
É da natureza do jornalismo, como diria o escorpião ao sapo, antes de ferroá-lo e afundar com ele no meio do rio.
O que não dá para tolerar é a hipocrisia: jornais e emissoras que participaram gostosamente da pirotecnia de que se acusa a Polícia Federal fazendo no outro dia eco às denúncias – procedentes – de violação de privacidade, linchamento moral, condenações sem julgamento. Enfim, de graves atentados aos direitos individuais teoricamente garantidos pela Constituição.
Constituição que não distingue entre corruptos e não corruptos, bandidos e mocinhos.
Não é porque certas coisas são inevitáveis que elas mudam de figura. O jornalista não pode fingir que entra de gaiato na história. Nem alegar que o direito à informação é absoluto, em nome do interesse coletivo.
Afinal, se é canalhice um agente público repassar informações de inquéritos sob segredo de Justiça, como se chamará o ato de divulgá-las?
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