Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por jornalistas mais multi e hipersensoriais

(Foto: ledora-escrevente Gabrieli Brunelli/Arquivo pessoal)

Há pelo menos uma década o termo “profissional multitarefa” tem se tornado cada vez mais usual nas redações de jornal e principalmente nas salas de aula de ensino de Jornalismo. Trata-se de uma popularização terminológica, provavelmente como um aspecto sintomático do impacto das práticas hipermidiáticas e da chamada cultura da “Convergência Digital” (Jenkins, 2010) na relação entre estudantes e profissionais de Jornalismo com a apuração e a gestão das informações. Assim que cabe observar o multitarefa como uma tendência de um mercado competitivo e em constante segmentação, sob a ilusão produtivista que a nossa mente e o nosso corpo podem realizar quatro a cinco atividades simultaneamente desde que capacitados por tecnologias mais eficazes.

Contudo, a inegável valorização de profissionais habilidosos no manuseio de diversas ferramentas tecnológicas parece vedar literalmente os nossos olhos para um certo atrofiamento daquelas nossas capacidades mais inerentes, senão no que o filósofo alemão Walter Benjamin já prenunciava no início do século XX, o empobrecimento da experiência em seu sentido mais natural, processual. Já naquela época, o pensador fazia uma crítica ao exagerado entusiasmo diante das benesses proporcionadas pelo advento tecnológico e sua implicação na crise do humano como modo de apreensão do mundo vivido.

Reconhecer a inquietação filosófica de Benjamin e a crise do paradigma humano no presente texto constitui um ponto de partida a fim de debatermos o que consideramos uma defesa necessária por espaços e fazeres jornalísticos mais humanizados. Principalmente quando atentamos para a necessidade de profissionais de imprensa (repórteres, redatores, diagramadores, fotógrafos, cinegrafistas, editores) que dominem não somente tecnologias digitais como celulares multimídias, drones e aplicativos de Inteligência Artificial com benefícios extraordinários, mas também as tecnologias do corpo, da mente e do espírito – que vamos chamar aqui de “tecnologias sensoriais”.

Em certa medida, chamamos atenção para profissionais com aptidões e virtudes bastante peculiares no que tange o uso dos seus sentidos sensoriais na apuração e leitura dos fatos. Profissionais exímios no ofício de detectar informações em espaços (espacialidades) e tempos (temporalidades) outros, onde e quando muitas vezes o uso de ferramentas e e/ou habilidades e competências ditas convencionais nem sempre são suficientes. Profissionais com os quais nós podemos aprender muito em suas “táticas” e “suas próprias maneiras” de explorar o máximo da comunicação humana com o mundo exterior e aqueles mundos que sempre invisibilizamos e negamos. Sobretudo quando essa inteligência sensorial precisa ser interpretada como uma astúcia de sobrevivência e de acesso para cotidianos inimagináveis. 

São profissionais como o fotógrafo João Maia, a jornalista Joana Belarmino de Sousa ou os jornalistas Marcos Lima e Ednilson Sacramento, que não somente venceram o preconceito social pelo fato de serem cegos, mas são fontes de inspiração para uma prática de jornalismo mais sincero às nuances e relevos assumidos pelo mundo à nossa volta. João Maia, fotógrafo reconhecido mundialmente pela cobertura dos jogos paralímpicos de Tóquio, Japão, em 2021. Joana Belarmino de Sousa, pernambucana e filha de trabalhadores rurais, se formou em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atuando em redações de jornais como O Norte e A União. Ela atualmente é professora de Jornalismo da UFPB, além de possuir doutorado em Semiótica na PUC de São Paulo. Marcos Lima, jornalista, influenciador digital e responsável pelo canal do YouTube “Histórias de cego”, atualmente com quase 400 mil inscritos. Ednilson Sacramento, jornalista baiano de 57 anos, formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e com uma experiência de mais de 20 anos em Comunicação.

Todos eles são profissionais que transformaram a ausência de um sentido (visão) e todas as adversidades enfrentadas como ponto de partida para o aguçamento e o desenvolvimento dos demais sentidos de modo muito mais eficiente do que qualquer pessoa não-cega. Entre os sentidos, o da escuta social, o mesmo sentido cada vez mais ignorado nos grupos de jovens viciados nas telas de celulares, mas que, no caso desses profissionais e cidadãos, se torna uma tecnologia hipersensorial, quando longos textos orais são memorizados e reproduzidos da maneira mais fidedigna possível e sem auxílio de qualquer ferramenta tecnológica. Uma audição boa no armazenamento de informações sonoras e eficaz na captação e distinção de vozes, sons, ruídos.

Mas também são profissionais que anseiam por mais oportunidades e cidadania, já que, da mesma forma que a cada década fica mais nítido que as redações e salas de aula multitarefas ainda não compreenderam a dimensão transformadora da presença de trabalhadores e intelectuais mais “multissensoriais” e “hipersensoriais”, fica também evidente que o debate de acessibilidade, inclusão e mais dignidade para as pessoas cegas no Brasil ainda não avançou, em especial no que tange a situação de alunas cegas de família de baixa renda e residentes em lugares onde as políticas públicas para Pessoas com Deficiência (PCD) ainda são praticamente inexistentes. 

As alunas PCDs e futuras profissionais multissensoriais de Rondonópolis, MT

Criadas no ano de 2021, as turmas especiais do curso de Bacharelado de Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), do Núcleo Pedagógico de Rondonópolis (cidade localizada a 220 km da capital Cuiabá, Mato Grosso), atualmente contam com três alunas PCDs, Elismárcia Tosta Aguiar Rossi, Débora Camila de Oliveira e Marilene Gomes de Araújo – sendo que antes eram quatro, com a aluna Edilene Benício Guimarães. São alunas, mulheres e cidadãs, cuja determinação em frequentar diariamente uma sala de aula de uma universidade pública do interior de Mato Grosso já constitui por si só um ato de resistência política contra o pensamento capacitista e o preconceito histórico contra pessoas cegas que ainda imperam nos mais diversos segmentos da sociedade. Jovens mulheres que escolheram o Jornalismo não somente como futuro campo de trabalho, mas espaço de luta para condições melhores de acessibilidade para uma população brasileira de mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 500 mil cegas e cerca de 6 milhões com baixa visão (IBGE, 2023).

Além da sala de aula, a rotina dessas alunas PCDs inclui o contato e o apoio de profissionais ledores/escreventes cedidos pela universidade e a frequência nos espaços da Associação Rondonopolitana de Deficientes Visuais (ARDV) e do Centro de Reabilitação Louis Braille (CRLB), instituições renomadas pelo trabalho social junto à população PCD de Rondonópolis. A aluna Débora Camila, 36 anos de idade, já foi casada e hoje é mãe de um menino de 5 anos. Até o ano de 2020, ela tinha visão somente de um olho, já que em outro olho tinha perdido a visão total aos 14 anos. Com uma oratória excepcional, a trajetória da aluna no curso convida professores e colegas a refletirem para a imagem do profissional jornalista que apresenta a voz como principal ferramenta de comunicação, uma tecnologia sensível potente. Ela é uma das mais participativas nas atividades e eventos do curso, mas principalmente engajada na luta por educação inclusiva para alunos e alunas PCDs e mais condições de acessibilidade no ambiente de trabalho dos jornalistas. Durante o primeiro Colóquio de Jornalismo de Rondonópolis, ela e a colega Elismárcia Aguiar ofertaram um minicurso sobre tecnologia assistiva, que contou a participação de alunos PCDs de escolas locais.

Para a futura jornalista Débora Camila, “pensar o jornalismo somente através da visão é você anular a possibilidade de receber a informação através de outros sentidos”. Ela analisa a multissensorialidade no jornalismo como a possibilidade de uma maior percepção externa do espaço, tempo e linguagem. Trata-se de uma tecnologia sensível no âmbito do trabalho de apuração jornalística do qual, no caso de muitos alunos e jornalistas cegos, permite não somente a prática de um jornalismo mais imparcial, quanto mais sincero à condição polissêmica com que a informação diariamente nos bombardeia. É, conforme reitera a jovem aluna, estabelecer uma “narrativa sensorial, perceptiva e analítica que corrobora na compreensão da informação em sua dimensão mais plural”. 

Não muito diferente de Débora Camila, a aluna Elismárcia Aguiar possui uma oratória impecável. Desde os 14 anos sonha ser uma grande jornalista, trabalhando à frente de um programa de televisão. Diariamente ela realiza um percurso desafiador do lugar onde mora, um bairro popular chamado Jardim Primavera, até à universidade, situada próxima de uma rodovia bastante movimentada (a BR 364). Por vezes desafiando não somente as adversidades físicas do trajeto casa ou universidade ao ponto de ônibus na noite, bem como o inevitável assédio de passageiros homens e a constante discriminação social em muitos lugares onde circula.

Se não bastasse a voz potente, essas alunas PCDs apresentam os outros sentidos bem aguçados. Conforme depoimento da aluna Elismárcia Aguiar, ela consegue captar “infrassons” com seus ouvidos, o que inclui identificar pequenos ruídos em escala de 20 a 40 hertz em espaços abertos. Trata-se de uma escala baixa para muitas pessoas comuns, inclusive notada em poucos repórteres de rua. “A audição facilita ouvir coisas que as pessoas que enxergam não conseguem ouvir. Perceber se a pessoa tem mais ou menos idade, além de perceber de uma forma diferente o ambiente onde ela se encontra… se o ambiente é aberto ou fechado”.

Como poucos profissionais de Jornalismo, essas futuras profissionais apresentam uma memória diferenciada. Muitas delas conseguem memorizar um roteiro inteiro de programa de rádio, uma lauda jornalística de reportagem ou mesmo um relato mais longo de uma fonte entrevistada. Para Débora Camila, a memória diferenciada é uma “resposta que o corpo humano dá, contribuindo para uma apuração mais minuciosa e densa dos fatos, ao contrário do que se vê nas coberturas jornalísticas atravessadas pelo signo do imediatismo irresponsável”. A referência é para um emprego extraordinário dos sentidos para a leitura da realidade, que se aperfeiçoa como instrumento de trabalho, mas principalmente como um ferramental para a vida.

Em alguma medida, o registro dessas histórias de vida e trajetórias acadêmico-profissionais devem nos apresentar lições não somente para a valorização dos sentidos humanos em tempos de virtualização (midiatização) profunda das relações sociais, mas sugerir o quanto nós podemos aprender e evoluir como profissionais e cidadãos com a presença dessas pessoas em nossos ambientes de trabalho e espaços sociais. Muito mais do que uma ação de inclusão ou mesmo prática de merchandising social perante a opinião pública, contar com essas alunas e profissionais PCDs precisa urgentemente ser analisado enquanto um exercício para um jornalismo mais cidadão e pleno. Em especial, na articulação mais consciente entre os saberes multitarefas e multissensoriais.

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Lawrenberg Advíncula da Silva é professor e coordenador do Curso de Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso – Unemat, Núcleo Pedagógico de Rondonópolis/Câmpus de Alto Araguaia. E-mail: lawrenberg@unemat.br.

Elismárcia Aguiar é estudante do curso de Jornalismo da Unemat/Rondonópolis.

Débora Camila de Oliveira é estudante do curso de Jornalismo da Unemat/Rondonópolis.

Marilene Gomes de Araújo é estudante do curso de Jornalismo da Unemat/Rondonópolis.