Quando alguém dizia a Tancredo Neves que tinha um segredo a lhe contar, mas que não passasse adiante, o mitológico político se recusava. “Se você, que é o dono do segredo, não é capaz de guardá-lo”, argumentava, que dirá eu?”
Era um jogo de cartas marcadas. De um lado, Tancredo queria saber o que o informante tinha a contar — não só pela informação em si, mas para deduzir, a partir dela, qual era a do interessado. Apenas se fazia de difícil. De outro lado, mais do que compartilhar o segredo com Tancredo, o seu dono queria que ele o passasse adiante: sendo Tancredo o inconfidente, a inconfidência seria recebida como verdadeira ou verossímil, e essa era a intenção original do repassador do fato (ou boato) sigiloso.
É mais ou menos o que acontece quando uma fonte conta algo a um repórter “em off”. O objetivo da fonte não é contribuir para o patrimônio informativo do jornalista, mas é fazê-lo se sentir seu devedor, como se daquilo se tratasse.
O que a fonte busca, mas não diz, nem ‘em off’, é um portador com boa reputação para a mercadoria que quer fazer circular. Pois, quanto maior a credibilidade do jornalista, maior será a credibilidade da história.
Reciprocamente, quanto mais importante for a fonte, mais o repórter poderá se gabar junto a quem lhe convier de seu acesso ao pessoal verdadeiramente quente do meio em que circula por dever de ofício.
O off, portanto, é um agregador de interesses, nas duas pontas da transação jornalística. Naturalmente, a fonte tem que saber com quem está falando, assim como o repórter precisa saber o que está publicando. Um não quer ser traído. O outro não quer ser enganado.
Um quer passar um recado para certos leitores em especial, sem correr o risco de que algum deles consiga extrair o seu nome do repórter. O outro quer contar a sua história para o maior número de leitores, sem correr o risco, potencialmente maior, de que algum deles o desmoralize como vendedor de uísque paraguaio.
Na minha experiência, nenhuma fonte deixou isso tão cristalinamente claro como o lamentável porém muitíssimo bem-informado ministro da Justiça da ditadura, Armando “nada a comentar” Falcão.
Quando o procurei pela primeira vez, ele me deu para levar algumas aspas de escasso valor de mercado — nada a ostentar perante o chefe. E se despediu dizendo: “Volte mais vezes. Quando a gente se conhecer melhor, terei mais coisas a contar.”
O ponto é que o off no cotidiano jornalístico está no centro de uma situação mais complexa do que pode parecer — e isso contribui para a sua longevidade, mesmo no estelar New York Times.
Por influência do seu ombudsman, ou melhor, public editor, Daniel Okrent, o comitê de 19 jornalistas criado na redação para “incrementar a confiança dos leitores” (conforme as primeiras palavras da matéria de Katharine Q. Seelye, na edição de ontem) incluiu entre as muitas providências tidas como promotoras de credibilidade a de limitar a citação de fontes anônimas.
Faz um ano que essa orientação está em vigor, mas com resultados duvidosos. Okrent contou ao comitê, segundo o seu relatório, que a mais frequente queixa dos leitores é sobre o uso de fontes não identificadas — “o assassino número 1 de nossa credibilidade”, de acordo com a metáfora mão pesada do grupo (por que não o “inimigo número 1”?)
Ressalvado, porém, o óbvio ululante — às vezes, garantir o anonimato é o único meio de extrair informações importantes — a idéia é pressionar mais o reportariado para que pressione mais as fontes a autorizarem a sua identificação, principalmente aquelas que “desejam enfaticamente ter os seus pontos de vista publicados”.
Esse, por sinal, é um capítulo à parte no problema do off. O leitor pode não perceber, nem tem a obrigação de ler jornal ao microscópio, mas o noticiário contém rotineiramente não só supostos fatos atribuídos a anônimos (“segundo um assessor, o presidente disse numa reunião a portas fechadas que…”), mas também idéias (“segundo um membro da equipe econômica, a grande vantagem da política de manter elevado o superávit fiscal é…”)
“Quando o anonimato é inevitável, repórteres e editores devem se esforçar mais para descrever as fontes mais detalhadamente”, recomenda o já chamado “comitê da credibilidade” do NYT. “O básico inclui como as fontes anônimas sabem o que sabem, por que estão dispostas a dar a informação e por que têm direito ao anonimato.”
Procurei sinais disso nas mais recentes matérias do repórter Douglas Jehl, responsável pela melhor cobertura das atribulações que cercam a aprovação, no Senado americano, do embaixador indicado pelo presidente Bush para a ONU, o ultra-direitista John Bolton.
Não encontrei. Por exemplo, o primeiro parágrafo de sua história de ontem sobre a recusa do Departamento do Estado de tornar públicos documentos internos sobre os repetidos choques entre Bolton e as agências de inteligência dos Estados Unidos, a propósito da Síria, termina com um “dizem funcionários da administração” e ponto final.
Na véspera, Daniel Okrent dedicou (mais uma vez) a sua coluna de domingo ao offismo. A folhas tantas deu um exemplo do que seriam descrições sem e com significado de fontes anônimas. Sem: “um funcionário do Congresso”. Com: “um funcionário do Congresso que se opõe à indicação de Bolton”. A calhar.
Em dado momento Okrent reconhece como é difícil a um repórter trabalhando numa matéria importante dizer simplesmente não a uma fonte que só abrirá o jogo com a condição de não ser citada pelo nome. “Fontes valiosas, insistindo no anonimato, ficam balançando (na cara dos repórteres) detalhes torturantes como se fossem biscoitos oferecidos a cães famintos”, compara.
Nos 12 meses de vigência do “cuidado com o off” no NYT, a proporção de fontes anônimas no noticiário caiu 24%. Mas a proporção de matérias com personagens não identificados caiu apenas 4 pontos (de 51% para 47%). E quase a metade dessas fontes foi identificada só como “funcionários” ou “assessores”, às vezes precedidos do que Okrent considera ser de sua predileção especial — “diversos”.
Outras vezes, é bem verdade, o leitor do NYT é informado que um funcionário, da área tal ou qual, pediu para não ser identificado por essa ou aquela razão, antes das suas declarações entre aspas.
Já sobre as precauções com o off na imprensa brasileira, é o caso de parafrasear o governador de Estado que avaliou — “em off” — para a Veja a quantas andava a abertura política de Geisel, em 1975. O governador (era Sinval Guazelli, do Rio Grande do Sul) resumiu o lentidão do processo em meia dúzia de palavras: “Estamos muito no começo de tudo.”