Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O debate público, o balcão da padaria e seus desafios

(Imagem de Tung Lam por Pixabay)

O vídeo mostra um grupo de voluntários consternados. Passando sacos de mantimentos de mão em mão, jato particular ao fundo, o líder do grupo se manifesta. Faz denúncias sobre o governo federal atrapalhar a entrega de suprimentos à população atingida pelas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024, uma das maiores tragédias climáticas da história do Brasil.

O protagonista do vídeo, o denunciante a carregar mantimentos, é um dos maiores influencers brasileiros. O centro de uma rede a movimentar milhões de pessoas nas redes sociais.

No balcão da padaria, o cliente ao lado comenta com o moço que entrega seu pão na chapa: “você viu o vídeo do cara tentando entregar mantimentos no Rio Grande do Sul e o governo atrapalhando?”. O moço do pão na chapa tinha assistido ao vídeo em seu celular, assim como uma ou duas pessoas ao lado do cliente que perguntava no balcão.

O governo se mobilizou rapidamente para tentar situar o que era falado no vídeo, negando qualquer impedimento a doações. E é realmente compreensível que informações desencontradas sejam comuns em situações de calamidade. Mas há um ponto de fundo neste curto-circuito entre o tempo do mundo informado pelas redes sociais e o tempo e a capilaridade da comunicação pública. A Internet, e o hábito contemporâneo de consumir informações, parece cada vez mais levar a uma questão: hoje, o que define a notícia? É o scroll infinito de uma rede social, onde notícias e postagens se sucedem sem parar? Ou é o ambiente fechado e muitas vezes polarizado de um grupo de Facebook ou Telegram?

No passado, o jornal matinal ou o telejornal noturno ofereciam um ponto de partida para contextualizar, num ponto comum, os acontecimentos do dia, ajudando o público a entender o que estava acontecendo ao seu redor. Atualmente, a sobrecarga de informações descoordenadas traz novos desafios.

Hoje, o acesso à desinformação é tão prevalente quanto o acesso à informação processada metodicamente, jornalisticamente. Um problema que, em tempos de desinformação tornada negócio, é agravado pela existência de operações transnacionais de desinformação, que minam a credibilidade dos fatos e aumentam a confusão entre o público. Operações que não apenas espalham informações falsas, mas também criam um ambiente de desconfiança quanto às instituições a articular a comunicação pública.

Os canais de informação passam por uma transformação em que operações mobilizadas por comunidades à franja, bolhas, se contrapõem e disputam com estruturas tradicionais da imprensa. A mediação dessas informações, feita tanto pelas comunidades online autônomas quanto pelo ecossistema tradicional de mídia, torna esse cenário ainda mais complexo.

Tivemos uma transição que envolve mudanças significativas nos costumes de uso, na infraestrutura tecnológica e nas rotinas editoriais. Um cenário que leva a uma questão: devemos focar em organizar o noticiário de forma clara e acessível ou em explicar e contextualizar continuamente o que é notícia? Um dilema crucial, pois é justamente nesse cenário de reorganização e de abertura de brechas que os esforços de desinformação se posicionam e operam, complicando ainda mais o trabalho jornalístico e a compreensão pública dos fatos.

Esse desafio pede um novo esforço a articular jornalistas, plataformas digitais e o público. Talvez jornalistas precisem adotar novas práticas, que considerem a velocidade e o volume de informações que circulam online. As plataformas digitais, por sua vez, têm a responsabilidade de desenvolver e implementar ferramentas que ajudem a distinguir entre informações verificadas e boatos e se mobilizar institucionalmente, se comprometendo com melhores práticas em relação aos arcabouços jurídicos que buscam estabilizar o debate público. 

Talvez a grande questão seja como viabilizar um ecossistema de informação robusto, entendido como transparente e confiável pelo público. Algo que vá além de uma lógica da informação de-cima-para-baixo, e convide à participação, ao diálogo, e à negociação e construção de consensos a partir de um ponto comum. Uma tarefa complexa, certamente. Mas que, em tempos de mudança tecnológica e risco de caos informacional, se impõe como inescapável.

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Tiago C. Soares é jornalista e doutor em História Econômica pela USP. É integrante do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA/USP), e pesquisador bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).