Longa é a lista das lições de casa que a imprensa brasileira não faz como deveria – embora mande a honestidade reconhecer que já foi maior, mesmo no passado recente, o seu rol de deveres descumpridos – por exemplo, ao tratar com dois pesos e duas medidas os malfeitos das patotas políticas do governo e da oposição.
No mundo inteiro, ou pelo menos nos países importantes em que isso é possível – o que exclui de saída a Rússia liberticida de Vladimir Putin – os jornais tendem a ladrar com mais força nos calcanhares no governo do que nos dos seus adversários. E está certo, pela simples razão de que os poderosos de turno sempre têm mais condições objetivas de fazer o mal – além de ter mais o que esconder.
Mas, no Brasil, muito do que a mídia bateu no governo Lula se deveu antes à antipatia prévia dos barões da comunicação pela nova elite no poder do que por seus malfeitos – ‘erros’, na sintaxe do lulismo – e não pelo imperativo de olhar com mais cuidado para os donos da bola, qualquer que seja a cor de sua camisa, do que para o resto dos jogadores em campo.
O que dava razão aos leitores que se queixavam da leniência dos jornalões diante dos governos tucanos ou demotucanos, nos municípios e Estados.
Aos poucos, isso foi mudando. Salvo melhor juízo, a inflexão começou com o chamado mensalão mineiro – a mãe de todos os mensalões – para beneficiar a afinal fracassada campanha reeleitoral do governador Eduardo Azeredo, em 1998. Azeredo é senador pelo PSDB. Foi presidente do partido. Quem levantou na imprensa a lebre do mensalão foi o Globo, insuspeito de petismo.
Agora, os jornais não deixam barato dois outros escândalos tucanos. Um atual, é a maracutaia envolvendo o Detran gaúcho, que suja o vestido da governadora Yeda Crusius. Outro, passado, são as miliardárias comissões pagas pela empreiteira francesa Alstom por negócios com a Eletropaulo e o Metrô, no governo Mario Covas.
Depois que a primeira notícia sobre as respectivas investigações do Ministério Público suíço [por que suíço?] saiu no Wall Street Journal, de Nova York [por que no Wall Street Journal?], a Folha e o Estado, parecendo portadores de reflexos retardados, demoraram a se mexer. Mas, desde que começaram a garimpar a história, duas semanas atrás, quase não passa dia sem que um, o outro, ou os dois, tragam mercadoria nova e potencialmente desabonadora para o PSDB – que, à maneira do PT a.m. (antes do mensalão), batia o bumbo da ética na política.
Mas o dever de casa que ainda faltava, em relação a essa denúncia, a Folha fez ontem, sexta-feira. Tomou posição em editorial contra o comportamento do amigão da casa e seu ex-articulista José Serra diante do escândalo. E tomou posição com uma contundência que o leitor só estava acostumado a encontrar nos editoriais críticos do governo federal. Em algumas passagens, parece o Estadão falando de Lula, já se sabe como.
Não que a Folha não bata em governos tucanos quando discorda de suas decisões ou projetos, ou quando os seus titulares pisam no tomate. Mas quando o gancho é uma denúncia de corrupção da pesada, é a primeira vez em muito tempo – talvez por falta de outros episódios do gênero de mesma envergadura, o que é outra história.
O editorial chama-se ‘Fatos e suspeitas’. Diz o seguinte:
‘É o kit dos petistas em atuação. Assim reagiu o governador de São Paulo, José Serra, diante das reações que o caso Alstom começa a provocar no ambiente político. Não que seu partido, o PSDB, seja contrário a investigar as suspeitas de irregularidade nos contratos da multinacional francesa com o Metrô e a Eletropaulo. Não, de jeito nenhum. Serra prontificou-se a cooperar com as investigações, ‘se mais informações aparecerem, porque até hoje não apareceram’.
Num raro exemplo de convergência na cúpula peessedebista, o ex-governador Geraldo Alckmin acompanhou os trilhos da argumentação de seu notório rival. ‘Você tem suspeitas. Qual é o fato? Eu acho que nós vivemos um período em que se quer confundir a opinião pública.’
Confunde-se a opinião pública, é certo. A confusão começa quando Alckmin dissocia ‘fatos’ de ‘suspeitas’. Há vários fatos. E são esses fatos que despertam suspeitas a respeito das tão propaladas qualidades gerenciais e éticas do tucanato paulista.
Em maio deste ano, um órgão de imprensa insuspeito de petismo, ‘The Wall Street Journal’, publicou a notícia de que a Alstom gastou US$ 6,8 milhões em propinas para ganhar licitação com o Metrô de São Paulo. Cerca de R$ 13 milhões foram repassados pela Alstom, segundo dados do Ministério Público da Suíça (tampouco um órgão conhecido por ter petistas infiltrados em seus gabinetes), a empresas de fachada, de modo a azeitar as engrenagens do sistema.
Uma das empresas, segundo as autoridades suíças, pertence a um colaborador próximo de Robson Marinho. Este foi coordenador da campanha eleitoral de Mário Covas e chefe da Casa Civil de 1995 a 1997, em seu primeiro mandato. Marinho é hoje conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. O conselheiro admite ter tido suas despesas pagas pela Alstom quando viajou à França para assistir aos jogos da Copa do Mundo de 1998. Foi também, no âmbito do TCE, o único defensor da prorrogação, por dez anos, de um contrato do Metrô com a empresa, previsto para durar três anos apenas.
Eis alguns fatos suficientes para justificar a mais rigorosa investigação. O governador José Serra declarou seu interesse em empreendê-la. Terá provavelmente esquecido de avisar seu líder na Assembléia Legislativa, o deputado Barros Munhoz. A sólida base tucana rejeita a criação de uma CPI para o caso.
Sem dúvida, é o ‘kit PSDB’ que está operando, com especial eficiência, numa Assembléia Legislativa desfibrada por longos anos de governismo. É também o ‘kit PSDB’ que, com impavidez a toda prova, se vende para a opinião pública como exemplo de modernidade gerencial.‘