Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na caverna de Platão

(Foto: Michael Kauer/Pixabay)

Nas sociedades tradicionais, o modo de pensar das pessoas está formado por costumes e mitos que não podem ser explicados nem justificados racionalmente. Portanto, as sociedades tradicionais proíbem certos tipos de perguntas que desestabilizariam seu sistema de crenças. As sociedades modernas emergem da liberação do poder de questionar essas formas tradicionais de pensamento. O Iluminismo Europeu do século XVIII exigiu que todos os costumes e instituições se justifiquem como úteis para a humanidade. Sob o impacto dessa demanda, a ciência e a tecnologia se tornaram a base para as novas crenças. Eles reformam a cultura gradualmente para ser o que pensamos como “racional”. Consequentemente, a tecnologia torna-se onipresente na vida cotidiana e os modos técnicos de pensamento passam a predominar acima de todos os outros.

Disse José Saramago (1922-2010), no documentário Janela da Alma (2001): “Nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje. […] Porque as próprias imagens que nos mostram a realidade de alguma maneira substituem a realidade. Nós estamos no mundo a que chamamos o mundo audiovisual, nós estamos efetivamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas ou atadas na caverna do Platão, olhando em frente, vendo sombras e acreditando que essas sombras são a realidade. Foi preciso passarem todos esses séculos para que a caverna do Platão aparecesse finalmente num momento da história da humanidade, que é hoje. E vai ser, e vai ser cada vez mais”. Joseph Goebbels (1897-1945), o ministro da Propaganda nazista, dizia que uma mentira repetida mil vezes se torna verdade. As redes sociais tornaram a afirmação de Goebbels uma realidade, com a velocidade estonteante de suas milícias e robôs digitais. Quando se fala da extinção humana gerada pela Inteligência Artificial (IA), a maioria dos cenários parte do mesmo ponto: um dia as máquinas ultrapassarão as capacidades humanas, ficarão fora de controle e se recusarão a ser desligadas.

A inteligência artificial (IA) se coloca como um dos grandes desafios para a ciência, a ética e toda a intelectualidade atual. Não é problema apenas de ordem científica-tecnológica, porém. Se coloca como um objeto-matéria de pensamento e estudo para diversas áreas, justamente devido às suas implicações para a área da ética, dos direitos humanos e da própria epistemologia, devendo necessariamente ser tratada de maneira interdisciplinar por seus estudiosos. O que hoje compreendemos como Inteligência Artificial ou IA, é considerado aqui como uma nova grande área a ser pensada pela filosofia. Isso se dá, inicialmente, pela compreensão de que a própria IA envolve a ideia da inteligência humana somada à criação tecnológica. Sendo assim, cria-se uma vasta área suscetível a perguntas, de ordem epistêmica, filosófica, política e, acima de tudo, ética. É por dizer respeito à vida humana que deve ser constantemente pensada. A exemplo das atrocidades já realizadas na história em nome da ciência é evidente a necessidade da ética ligada à ciência.

Nesse cenário, as máquinas seriam capazes de assumir o controle sobre a humanidade (corpo social), como no filme The Matrix (1999), dirigido pelas irmãs Lana Wachowski e Lilly Wachowski? Ou, pensando na perspectiva de que nós existimos independentemente das máquinas, enquanto elas dependem de nós, quais serão as capacidades das máquinas de sobrepujar a vida humana se estivessem sendo controladas por alguém? Ou ainda poderíamos nos perguntar: quem exerceria o controle/vigilância sobre uma tecnologia que é capaz de imitar, simular, e se sobrepor à vida como conhecemos? A atual capacidade de criarmos simulações da vida real também abre espaço para argumentos que podem abalar as certezas quanto ao futuro da vida humana e sua relação com a IA.

“Enquanto isso, nas redes sociais, os delitos permanecem impunes. Os indivíduos e as corporações precisam ser responsabilizadas pelas mensagens que veiculam, da mesma maneira que os jornalistas e as empresas de comunicação das mídias tradicionais. Eles já provocaram muitos estragos à democracia. Sem botar a lei na selva selvagem das redes sociais, estamos condenados a uma guerra desigual entre o estilingue e o canhão”, argumenta o cronista e jornalista Severino Francisco em sua coluna “Crônica da Cidade” (Correio Braziliense, 18.5.2024). Marx (1818-1883) e os teóricos da modernização do período de pós-guerra acreditaram que a tecnologia era o servo neutro das necessidades humanas básicas. A teoria substantiva não faz tal suposição sobre as necessidades a que a tecnologia serve e não é otimista, mas crítica. Nesse contexto, a autonomia da tecnologia é ameaçadora e malévola. Uma vez libertada, a tecnologia fica cada vez mais imperialista, tomando domínios sucessivos da vida social.

No campo dos media, há de se diferenciar entre diversos meios de comunicação, rotinas produtivas, estilos, e modos de endereçamento. Penso que a democracia não é um lugar fixo, mas uma caminhada árdua. Está mais próxima de uma escada do que de um pódio. Como a democracia pode incorporar e fazer dialogar grupos distintos? Como lidar com a diversidade? Se admitirmos que a emoção é importante para a cognição, para a interpretação e para o engajamento argumentativo, convém ouvir atentamente o poeta Sérgio Vaz, autor do livro Colecionador de pedras (2013): “adubar a terra/com números e letras/asas e poemas/para colher lírios/cravos e alfazemas/Agricultor/o bom mestre sabe/que espinhos/e pétalas/fazem parte da primavera/porque ensinar/é regar a semente/sem afogar a flor” (Ao Mestre, a Flor).

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG). Poeta, professor autônomo e pesquisador independente. Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).