Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre a internet e danos colaterais

(Foto: Igor Starkov/Unsplash)

Durante todo o primeiro semestre de 1985 (com apenas uma mochila nas costas, o que era comum na época), eu e a parceira Beth percorremos por terra todo o sudeste da Ásia. Tínhamos já nossos dois filhos, de doze e de sete anos, que ficaram aos cuidados dos avós maternos. Viajamos de barco, ônibus, bicicleta, de trem ou mesmo a pé – como os 240 quilômetros feitos em volta dos Annapurnas, no alto dos Himalaias.

Chegando à Índia, resolvemos nos concentrar no norte, no estado de Uttar Pradesh, por umas boas três semanas. Ali se veem preciosidades como o rio Ganges em Varanassi, o Taj Mahal e o rubro forte de Agra, entre outras.

Não apenas templos ou palácios retinham nossas atenções. Já sendo pais, instintivamente nós olhávamos as crianças com uma atenção especial, talvez tentando levar a elas uma forma de carinho transmitida pelo olhar. É comum na nossa cultura brasileira passar a mão na cabeça de uma criança recém-conhecida, como uma expressão de afeto. Mas isso não pode ser feito na Indonésia. Ali, a mão passada sobre uma cabecinha estaria obstruindo a relação dessa criança com os entes superiores que olham e cuidam dela lá do alto. Viajando e aprendendo.

No entanto, no norte da Índia notamos uma coisa diferente. Vez ou outra víamos crianças vestidas de uniformes limpinhos e – a julgar pelas idades – indo para escolas primárias. Mas estas crianças, se me lembro – ou por questão de horário, talvez –, não eram maioria. A maioria – na casa dos seis ou sete anos para cima – era sempre vista trabalhando. Sim, trabalhando nas mais diferentes atividades nas áreas urbanas: feiras, mercados públicos, pequenas lojas, carregando compras, ferramentas, cestos etc. E mais ainda nas áreas rurais, no plantio ou nas colheitas.

Mais tarde, lendo sobre a relação criança-trabalho, esse aspecto “cultural” da Índia, fiquei sabendo que o Uttar Pradesh é o estado que mais emprega crianças, cerca de 20% da população infantil de todo o país, segundo dados da Save the Children, de 2016.  No mesmo ano havia 8,3 milhões de crianças trabalhando, com idades de cinco a quatorze anos. Aprendi também que naquele país existe um tipo de trabalho chamado bonded labour. Este o nome dado a qualquer tipo de trabalho que é feito por uma criança, sem remuneração, para pagar uma dívida assumida pelo pai ou responsável. Há outro nome para isso a não ser escravatura?

Desde 1986 quase uma dezena de leis foram criadas na Índia, principalmente depois de 2005, para mudar esse quadro. O país é também signatário de um tratado das Nações Unidas, o Sustainable Development Goals, para eliminar o trabalho de crianças até 2025. Em termos de trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho, os primeiros lugares ainda estão com Burkina Faso, Somália, Etiópia e Haiti. 

Tecnologia e escravatura

Em 2024, a Índia é listada como a quinta potência mundial, em termos de Produto Interno Bruto. Esse boom econômico tem sido impulsionado pela adoção das mesmas tecnologias adotadas mundo afora. No entanto, dois terços da população do país ainda vivem abaixo da chamada linha de pobreza. A essas condições de pobreza se somam normas culturais milenares que sem dúvida irão manter o quadro atual por longo tempo.

Com a ajuda de Claude Levi-Strauss, entendo que “cultura”, no contexto acima, é aquele conjunto de atividades, crenças, símbolos, valores e sanções que, concebidas e adotadas ao longo de certo tempo – geralmente longo –, retratam ou definem determinado grupo humano. A característica mais forte da tecnologia digital é a velocidade. Essas ferramentas, sistemas e dispositivos que hoje podem gerar, armazenar ou processar dados, no meu entender, estão também dando à luz a uma nova cultura, uma cultura mais ampla, de alcance global e não mais restrita a um local, como antes. 

A mesma tecnologia que hoje impulsiona as economias mundo afora passou a ocupar um lugar preponderante no contexto da vida privada da maioria dos indivíduos, com o advento das redes sociais. Quando a internet ainda engatinhava – e ainda se lembrando do envelope, dos selos e da fotografia em papel –, muitas mães postavam fotos de seus filhos no primeiro dia de escola, ou soprando a vela no bolo de aniversário, para os avós ou parentes próximos. O narcisismo, fator dominante dessa nova cultura, na última década mudou totalmente esse quadro. Este narcisismo mais a ganância de alguns pais – de fato, de muitos – fizeram deles influencers que passaram a ver seus filhos como commodities, como objetos de sua propriedade e que podem gerar ganhos.

Em artigo de março do ano passado na Teenvogue.com, a jornalista Fortesa Latifi vai fundo nesse assunto. Por razões óbvias ela não cita nomes reais. O artigo examina em detalhe o caso de uma adolescente americana que lamenta sua experiência como objeto nas redes desde sua tenra infância. Entre os canais da família, só o YouTube já teve mais de um bilhão de acessos. Quando sua imagem viralizou, o ganho com o esse mesmo canal deu aos pais uma nova casa e um carro novo. Seus pais deixaram os empregos para gerenciar a “carreira” da criança. 

A multiplicação destes canais, como temos visto, está espalhando para o resto do planeta aquela mesma prática de abuso de privacidade e de exploração de crianças visando a ganhos financeiros. A velocidade da tecnologia nos traz de volta – em pouco mais de uma década! – um aspecto daquela cultura que levou mais de mil anos para se estabelecer na Índia. Já que um dos assuntos no momento é a regulamentação das redes sociais quanto a fake news, por que não colocar também nessa pauta o banimento dos canais que, em nome do entretenimento, vêm escravizando tantas crianças?

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Marcus Cremonese é graduado em jornalismo pela FACHA, Rio de Janeiro. Teve matérias publicadas no Jornal do Brasil e no O Tempo, de Belo Horizonte. Mudando-se para a Austrália, publicou no Journal of Audiovisual Media in Medicine (JAMM), de Londres. Produz ilustrações científicas para livros e revistas médicas.