Se era uma homenagem antecipada do governo e do órgão controlador da publicidade no país ao Dia Internacional da Mulher, tiro de meta. Se uma tramoia da concorrência (leia-se Ambev), gol contra. Se golpe publicitário da Devassa, 1 a 0 no placar.
Mas é bastante provável que não tenha sido nada disso; apenas uma exorbitância da SEPM (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres) e do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Uma parte da torcida pediu e a arbitragem puxou o cartão vermelho para o comercial da cerveja Devassa com a modelo Paris Hilton. A outra parte (incomensuravelmente maior, até porque engrossada pela freguesia internacional da internet) não entendeu até agora o porquê da punição.
Paris Hilton não tira a roupa, limitando-se a esfregar uma lata de cerveja gelada ao longo dos quadris, por cima de um pretinho básico, sob as vistas de uma horda ululante na calçada em frente. Nenhuma simulação de orgasmo para o voyeur que de uma janela indiscreta a observa de binóculos. Se comparado ao que comumente se produz no universo publicitário movido a malte, lúpulo, cevada e curvas sedutoras, o comercial, sobretudo porque ambientado na capital mundial do bundalelê e do fio dental, além de estrelado por uma notória messalina de butique, surpreende pelo recato. Dê uma geral nos anúncios de cerveja e refrigerantes disponíveis na internet e compare.
Mas gente que possivelmente nunca viu aqueles comerciais da Budweiser com casais pelados em piscinas e titilações que tais buzinou na ouvidoria da SEPM e fez chegar ao Conar sua indignação com o ‘conteúdo sexista e desrespeitoso à mulher’ do anúncio da Devassa. Com tanta coisa na TV a justificar nossa indignação – intervalos comerciais nos canais a cabo (não foi isso o combinado), excesso de anúncios idiotas e filmes reprisados, com erros crassos de tradução e português nas legendas, quando não dublados e promovidos em espanhol – para que desperdiçar tempo e fúria com um inócuo comercial de cerveja?
Monstruosidade plastificada
O Código do Conar recomenda aos comerciais de bebidas que evitem fazer ‘apelos à sensualidade’ e tratar os modelos em cena ‘como objeto sexual’. Por tais critérios, dezenas de outros anúncios teriam de sair do ar, inclusive aquele da Devassa em que uma bela morena brasileira simula tirar a parte de baixo do biquíni, incitada por um paquerador de praia.
Uma representante da SEPM foi mais específica: para ela, o anúncio proibido ‘deprecia o corpo feminino e desmoraliza as louras’. Sucessivas plásticas e lipoaspirações, estas sim, depreciaram o corpo de Paris Hilton; e apelar para a sensualidade é o que ela mais tem feito na vida. Objeto sexual assumido, Paris Hilton é o epítome da loura burra, espécime que de fato existe na vida real, como existem a morena burra, a ruiva burra, a negra burra, a mulata burra e a mameluca burra. A publicidade sempre trabalhou e continuará trabalhando com símbolos e estereótipos. Vivemos, já há bastante tempo, a era da loura burra. Um dia passa.
As louras já foram cultuadas como o símbolo máximo da sedução, inocência, pureza e até da santidade. Tudo parece ter começado três séculos antes de Cristo, quando o escultor Praxíteles usou sua voluptuosa (e loura) amante como modelo para uma estátua de Afrodite, a deusa do amor dos gregos, cujas melenas douradas foram copiadas nas representações de Vênus, a Afrodite dos romanos, tradição mantida por Botticelli, Urbino e tantos outros artistas italianos. Na iconografia renascentista, Eva, Virgem Maria e Madalena também eram louras. Até recentemente em certas regiões da África e no Japão, as médicas e enfermeiras de cabelos claros inspiravam mais confiança nos pacientes, constatou a britânica Joanna Pitman, autora de uma erudita pesquisa sobre as louras, On Blondes.
Segundo Pitman, a loura natural sempre foi uma avis rara, daí a inflação de falsas louras nos cinco continentes. Marilyn Monroe, a suprema deusa da espécie, não nasceu loura. Lady Di gastava uma fortuna para manter aquela cor de cabelo. A desenxabida Paris Hilton também é oxigenada. Com tantas morenas (e mesmo falsas louras) lindas no Brasil, por que importar aquela ‘monstruosidade plastificada’?, cobrou um leitor da revista eletrônica Salon, que talvez desconheça o significado, entre nós, da expressão ‘loura gelada’. Num certo sentido, foi uma sacada esperta importar a saliente, mas glacial modelo americana para o comercial da Devassa.
‘É natural’
Bem mais esperta que a exacerbada reação da SEPM e do Conar, que resultou em involuntário hype para a cerveja, só há oito anos no mercado e praticamente desconhecida fora do Estado do Rio até o auê da semana passada.
Já na quarta-feira (3/3) uma nova versão do comercial censurado estava pronta para entrar no ar: tarjas pretas na bionda do rótulo da garrafa, gozação na censura, e só uma tomada de Paris Hilton, em close, sussurrando o nome da cerveja, ao som do mesmo tema de O Homem do Braço de Ouro. A versão original continua disponível no YouTube e nos incontáveis blogs e sites que tiraram sarro do nosso primeiro mico internacional do ano.
Discutindo o imbróglio no último programa Entre Aspas, da Globo News, a socióloga Ana Lúcia Miranda reclamou da falta, na propaganda, de ‘uma ótica feminina da sensualidade’. Se a mulher também consome cerveja, por que só os marmanjos têm destaque nos anúncios, como sujeitos da ação de beber? A cobrança é válida, mas talvez seja imprudente reivindicar uma inversão do ponto de vista sem mudar a filosofia, por assim dizer, da propaganda.
Há um anúncio da cerveja Tröegs, também disponível no YouTube, em que uma loura de biquíni amarelo toma, sozinha, uma cerveja, dá um arroto e, após outro gole, solta um traque, acompanhado de um sorriso e a desculpa: ‘It´s natural’. Sim, é natural, mas desconfio que as guardiãs da imagem feminina no governo e os fiscais do Conar o acusariam de depreciar a mulher e desrespeitar sua intimidade intestinal.
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Jornalista