Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A ficção em dois capítulos do discurso jornalístico

A narrativa é um gênero que percorre a história da humanidade de diversas formas, travestindo-se de relato fantástico, contos de alumbramento, fábulas, conflitos inventados sob o império da fantasia e derivados do desejo de suportar, falsear e/ou recriar a realidade. Enredos se enovelam uns nos outros e dialogam de tal modo que, às vezes, personagens, objetos mágicos e dramas repetem a mesma cantilena do bem versus o mal. No campo da literatura, tais elementos tornam fecundo o jogo tenso de disputas entre heróis e vilões movidos pelo maravilhoso universo das paixões humanas. Agora, quando tudo isso é transposto para as páginas do jornal, materializa-se o tom imaginativo e impressionista que ceifa a análise crítica e, não raro, dá espaço à superficialidade da apelação.

Dois artigos do agrônomo Xico Graziano, publicados no Estadão no prazo de um mês, apresentam-se como exemplares seletos da mesma espécie, ambos primam pelos efeitos de sensacionalismo no mesmo estilo do que pior se instalou na fauna televisiva. A apresentação de elementos fantásticos, seres exóticos, aberrações e anomalias que rendem audiência já não é novidade na tela: o homem-peixe entra no auditório de braços dados com a criança envelhecida precocemente sob aplausos da platéia histérica entre intervalos de anúncio e chamadas publicitárias.

No jornal impresso, o espaço do sensacionalismo sempre esteve atrelado à imprensa marrom e a órgãos de pouca credibilidade, por isso, causaria estranheza o encontro de um texto com tais efeitos de sentido nas páginas do Estadão, órgão tão valorizado pela qualidade e seriedade de seus articulistas e matérias. Causaria, se a linguagem fosse terreno de regularidade lógica, engrenagem de exatidões e fruto de concepções neutras. Mas, como a ideologia é constitutiva dos atos de dizer, como o sujeito é afetado pelo lugar social que ocupa na conjuntura de poder e como o sentido nunca é totalmente controlado, podendo sempre ser outro, só nos resta o gesto de interpretação dos textos ‘Coração invadido’ e ‘Barril de pólvora’. Gesto este que não é experimentado igualmente por todos os leitores do jornal, posto que demanda o acesso à memória discursiva, que sustenta toda a significação e os contextos sócio-históricos em que as palavras foram geradas.

Coração invadido

A história de D. Nise, narrada com riqueza de detalhes e com dados pessoais de preciosa relevância para a compreensão da questão agrária nacional, assemelha-se à exposição das entrevistas de tragédias nos programas televisivos, nos quais a platéia come com voracidade os requintes de crueldade da fala de um seqüestrador ou bebe avidamente os depoimentos raivosos de um casal em litígio. Como nos programas televisivos comandados por loiras de muitos tons, o texto é uma seqüência factual, pontuada por muitas datas e referências temporais, que relembram a estrutura das narrativas infantis: ‘Tudo começou em 1939’, ‘tempos depois’, ‘desde então’, ‘passaram-se os anos’, ‘tudo corria bem. Mas o destino aprontou uma peça’.

Essa materialidade lingüística faz falar o efeito de uma infantilizada historinha, a ser contada com didatismo ao leitor, que precisa acompanhar todos as etapas do enredo a partir das marcações do tempo. O leitor é convidado a viver e incorporar passo a passo a tragédia do personagem, experimentando o sofrimento da família Borges de perto, na própria carne. O efeito de piedade vai se alargando lentamente à medida que ‘os azares da vida’ são narrados e ‘a tristeza causada pelo progresso’ é noticiada. O desejo de viver os ‘seus dias juntos em paz’ é tão puro quanto o de Cinderela ir ao baile.

Por isso, o ‘coração invadido’ remete o leitor ao órgão atribuído aos sentimentos e emoções, símbolo vital dos batimentos da vida e responsável pelo bombeamento do sangue no corpo, e não o remete à questão agrária e/ou reforma agrária. Esse deslocamento promove a emergência de ‘uma tristeza para os pobres sitiantes que construíram (…) um patrimônio erguido com muito trabalho’ e dialoga com o fim do estado de felicidade e plenitude que a família experimentava antes de os funcionários públicos do Itesp e Incra chegarem. Para esse sujeito, é tão doloroso falar de reforma agrária no plano social, econômico e político que até a ‘complicada (…) separação litigiosa de D. Nise’ agudiza o quadro de lamentos de tamanho dramalhão.

A tiro de capanga

Todo esse sofrimento cumulativo, disponibilizado ao leitor para que ele se torne voyeur da dor alheia, passa a ser metáfora de todas as histórias de desapropriação de terra no país e, num movimento metonímico de tomar uma parte no lugar do todo, o sujeito desse discurso constrói uma narrativa como se ela fosse a única possível de ser dita, como se ela representasse todas as histórias constantes dos arquivos do Incra e como se ela correspondesse à verdade dos fatos. Assim, o jornal estaria estampando uma narrativa tão real que mereceria todo o crédito do leitor.

Mas não é isso que o texto de Tânia Andrade, agrônoma e diretora do Itesp no período de 1995 a 2001, responsável na época pelo caso, mostra ao afirmar que ‘a família Borges espelha bem a situação da região – uma única família domina várias fazendas contíguas: Santo Ivo, Jamaica, Santa Clara e Santa Adélia I e II. Juntas essas áreas são equivalentes a quase 200 módulos rurais (…) Dona Nise Borges não é uma pobre sitiante, mas seus 67 hectares cercados de benfeitorias (e que sequer foram vistoriados) são o remanescente da ‘divisão em vida de sua propriedade para os filhos‘. Provavelmente a sede da antiga fazenda de 5 mil hectares…’. Ocupando aqui outro lugar no discurso, a família Borges não é narrada como representante dos pequenos produtores rurais ou da agricultura camponesa, mas é falada como detentora de um domínio de terras, um complexo de propriedades com medidas que em muito se distanciam dos sitiantes brasileiros.

Num país onde 47% do território estão nas mãos de 1% da população, o ‘coração’ em curso não pode ser tomado como regra. Mais: ao fazer a defesa das dores de uma família de fazendeiros, fazendo-os passar por pobres sitiantes, o sujeito borda uma fantasia que melhor é capaz de encher os olhos do leitor e, assim, ele deixa de falar das famílias que realmente perderam suas vidas a tiro de capanga. Também silencia os sentidos dados pela realidade nacional, em que famílias do campo são expulsas de suas terras sob ameaça de morte, despejo e fome; em que camponeses são ludibriados por meio de dívidas impagáveis; em que seres humanos são mantidos como escravos em lavouras do interior do país. O ‘coração invadido’ (no singular) apaga tantos outros corações invadidos (no plural), vilipendiados e massacrados, ao longo de quinhentos anos de violência e concentração de terra, presos pelos gonzos de tiros, ameaças e expulsões.

Polarização simplista

Posto isso, é possível dizer que o texto discursiviza apenas o bater de um coração, a saber, a caricata dor da família Borges, que é ameaçada e roubada pela suposta crueldade e falcatrua dos órgãos públicos e do MST. Quando se refere ao ITESP e ao MST, o sujeito os coloca no lugar daqueles que desconhecem a lei ou agem de má fé, usurpando o patrimônio alheio. Vistos como agentes de ‘falcatruas ideológicas’, ‘barbaridade’, ‘maledicência’ e ‘equívoco cometido’, técnicos e autoridades de órgãos públicos e sem-terra cometeriam distorções jurídicas e técnicas e, assim, agiriam na zona nebulosa da incompetência e da desonestidade, não merecendo credibilidade. A condenação de esferas do Executivo, discursivizadas pelos efeitos de roubo, logro e ardileza, desenha o rosto de uma bruxa malvada que, ao sabor da própria crueldade ou imperícia, engendra o mal, aterrorizando o ‘coração que sofre’, maculando a vida de D. Nise, tão cheia de dor.

A retórica de atingir o MST com tais sentidos não é novidade, há muito que o discurso jornalístico tem materializado efeitos de hostilidade em relação a esse movimento, marcando-o com o lugar de banditismo, fora-da-lei e quadrilheiro. Agora, fazer com que tais sentidos respinguem no Executivo é um dado novo, um efeito de atualização dessa retórica, um acontecimento discursivo em que os sentidos estabilizados se reorganizam de outro modo. Tal deslocamento da condenação para novo e outro campo irrompe e é determinado pela atual conjuntura sócio-histórica, em que o cargo de presidente é experimentado pela primeira vez por um operário-padrão.

É interessante observar que a estratégia discursiva desse sujeito não se fixa no campo da argumentação, como se pretende o texto jornalístico; mas prende-se à polarização simplista de uma narrativa em que o bem e o mal digladiam-se, de maneira estereotipada, com os papéis e personagens já apresentados. Desse modo, criam-se os contornos para uma peça reles, de má qualidade, que nem de longe toca o encanto dos enredos dos contos fantásticos.

O enredo que se repete

Mês depois, a mesma polarização continuou a ocupar as páginas do mesmo jornal, agora com o artigo ‘Barril de pólvora’, do mesmo autor. Agora não mais o espaço bucólico de um pequeno sítio, mas o cenário de usinas de açúcar e álcool, estruturas pela monocultura, mecanização e concentração de terra. O maior pólo produtor e exportador de açúcar e álcool, enraizado na região de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, é responsável por cifras lucrativas de muitos zeros e acordos políticos de solidez invejável. O setor sucro-alcooleiro, peso-pesado nas estatísticas da balança comercial brasileira, cunhou para a cidade o título de ‘capital nacional do agronegócio’.

Apenas um olhar iniciante sobre a topografia da região é capaz de observar o imenso mar de canaviais, que abraça a cidade e inunda a visão. Por onde a cana passou, deixou um rastro de pouquíssimas reservas nativas e quase nada de floretas originais da região, mas construiu rodovias e estradas de boa qualidade, tão necessárias ao escoamento de tão preciosa matéria-prima. Tempos atrás, a mão-de-obra infantil e escrava ainda compunha o panorama das relações trabalhistas por aqui; hoje desfilam ônibus rurais com bóias-frias sugados até o tutano em horas de serviço braçal desumano, com registro em carteira, como se a dor documentada doesse menos.

Foi nessa cidade que o Partido dos Trabalhadores viu nascer o atual ministro da Fazenda, eleito prefeito por duas vezes e articulador importante do setor em discussão com apoios de campanha a Lula no último pleito. Viagens oficiais do presidente já levaram, na bagagem, representantes das usinas para fechar negócios no estrangeiro. A Agrishow, maior evento-fashion de maquinaria, insumos, implementos e tecnologias para o setor, já foi visitada por Lula com direito a palanque e encontro partilhado com usineiros. Esses indícios dão conta de uma leitura: a cidade passou a ser representada, falada e propagandeada por um grupo e em nome dos negócios de uma minoria. Os títulos de ‘Califórnia brasileira’ e de ‘Capital nacional do agronegócio’ designam e instalam uma representação para a cidade em consonância com o que apresentei até aqui.

Jóia e raridade

À condição desses títulos, a cidade responde com um crescimento constante e gradativo da favelização (o jornal Folha de S.Paulo Ribeirão divulgou recentemente que há 32 favelas na cidade) e aumento das gritantes desigualdades entre os condomínios fechados nos bairros nobres (em franca expansão, diga-se de passagem) e a periferia. O espaço urbano, marcado por abismos de distâncias sociais, apresenta-se como palco de focos de confrontação e a cidade, que antes contemplava a massa pobre com mínimas condições de sobrevivência, ora empregando-a fartamente na lavoura como bóia-fria, ora no comércio formal ou informal, agora não acolhe todos sob o manto da empregabilidade, tornando o desemprego uma realidade crescente. Esses dados são reveladores das condições de produção em que os discursos são gerados, marcam a distância entre o enriquecimento do agronegócio e o empobrecimento dos trabalhadores e indicam quais posições de manutenção e/ou ruptura de tal ordem entram em confrontação no texto ‘Barril de pólvora’

Já no título, o sujeito faz falar o perigo da explosão e a expectativa de um cenário de destruição, cujos efeitos avassaladores estão prestes a se mostrar. O que, numa leitura ingênua ou literal, seria apenas um alarde sensacionalista, pode ser lido a partir da memória de sentidos já construídos pela/na narrativa do bem versus mal, que aqui é de novo atualizada. Mesmos personagens vitimados, mesmo conflito rasteiro e mesmos algozes desonestos do movimento social e da esfera pública: a cadeia de sentidos, que se instala aqui, reclama uma leitura intertextual e retoma a inscrição de um já-dito.

De um lado, ‘o centro da agricultura mais evoluída’, ‘uma jóia ambiental’, ‘essa raridade ecológica que se chama Fazenda da Pedra’, que prima pelo ‘zelo com as matas nativas’ e se localiza na ‘Califórnia brasileira’. Jóia e raridade materializam lingüisticamente preciosidade, valor exagerado, objeto suntuoso de importância indiscutível, sentidos estes que vêm acompanhados pelos atributos de preservação ambiental, respeito e conservação das matas nativas. Dito dessa forma, o sujeito se instala na posição de defesa não só da referida fazenda (que, aliás, se chama Fazenda da Barra, e não Fazenda da Pedra), mas do agronegócio como modelo de evolução, modernidade e desenvolvimento, silenciando que o contrário disso é entendido como modelo de atraso, privação e retardamento.

Estratégia e guerra

Assim, ao evocar um imaginário de progresso para a cidade, o sujeito formula que ‘o que se verifica na terra do ministro Palocci não tem paralelo na história dos conflitos agrários’. A região de Ribeirão Preto, que no início do texto foi chamada de ‘Califórnia brasileira’, passa agora a ser designada como ‘terra do ministro Palocci’, ou seja, não se trata da terra de qualquer um, nem da terra do povo da cidade, mas do ministro da Fazenda, o que tenta naturalizar sentidos de que um nome próprio de peso no cenário político consubstancia a geografia de toda uma região. Ao promover essa ligação, a cidade é alinhada à classe social dominante, a uma só atividade econômica e à esfera de poder do capital. Dito isso, tal discurso põe em movimento sentidos de que há explosivos suficientes e pólvora capaz de implodir a ordem de produtividade agrícola, assegurada pelo estatuto jurídico e pelo Estado democrático.

O dizer desse sujeito é determinado pelo lugar social que ele ocupa, a saber, aquele que está em sintonia com a terra concentrada, que faz parecer estranha e ilegítima a mobilização dos homens do campo e da cidade e que sinaliza um estado de bem-aventurança social para todos os moradores da cidade. Para justificar(-se) nessa posição, o sujeito faz(-se) falar no lugar de confiança dos fazendeiros, esboçando passos de cumplicidade com a dor e o sofrimento deles. Isso se manifesta, pois de novo há narração da história de vida do ‘infeliz investidor’ que arrancou apenas um pedaço da mata, comprou uma área rural inocentemente e entrou em ‘um inferno astral’. De novo, consolida-se a imagem do fazendeiro no lugar de vítima de citadinos mal-intencionados, de líderes do MST e de um certo promotor. Dessa forma, o artigo discursiviza novamente um conto da carochinha, apoiado em caricaturas tão grosseiras quanto risíveis. Assim, o caso da desapropriação de uma fazenda na região de uma das maiores concentrações de riqueza do país passa a visto como conflito pessoal, descolado da ordem social, política e econômica. De um lado, os fazendeiros têm assegurada a idoneidade de sua reputação ilibada e são colocados como heróis; de outro malfeitores, designados como ‘algozes’, ‘justiceiros agrários’, tentam instalar o crime organizado, agora com apoio não do Executivo, mas do Ministério Público.

Como toda Gata Borralheira reclama uma madrasta malvada, terrível e cruel, entram em cena os personagens delineados para representar a destruição: ‘gente armada de facões’, que promove ‘um festival de horrores’ e cuja atuação ‘parece um filme de bangue-bangue’. Evoca-se a inscrição social desse tipo de filme e a memória construída em torno de tensas trocas de tiros, faroeste distante, justiceiros dando pontapés em portas de madeira e garrafas quebradas como fundo musical. Ao instalar o retorno desse já-lá, o sujeito atualiza-o no cenário do agronegócio, em cujo relevo é desenhada a seguinte linha fronteiriça: de um lado o que é estratégia jurídica (no caso aquela empreendida pelos ruralistas) e, de outro, o que é tática de guerra (aquela deflagrada pelas ações do MST e do Ministério Público).

Acordos e negociatas

No discurso desse sujeito, os dois últimos personagens são talhados como sinais de ‘molecagem’ e donos de ‘argumentos malandros’ e, assim, por serem moleques, seres infantis e meninos de pouca idade, não merecem credibilidade nem respeito, posto que não há legitimidade nem legalidade na luta que executam, até porque não têm maturidade para isso.

Já não é novidade que os órgãos de imprensa têm primado em usar invadir, em vez de ocupar, modelando efeitos de criminalização dos camponeses organizados politicamente e tornando-os evidentes e únicos de serem ditos. Mas, aqui, há um deslocamento e uma substituição que desestabilizam tais sentidos dominantes. Não é tão somente a luta política dos sem-terra que se condena, não são somente as condições sociais de desigualdade que se silenciam, mas atribui-se ao MP a conivência com o crime e o desvio da ordem jurídica. No texto anterior, efeitos de incompetência técnica, má fé e fraude se ligavam ao Executivo; aqui sentidos de ilegalidade, corrupção e ‘escândalo jurídico’ são atribuídos ao Ministério Público.

‘Quem, de fato, comanda o movimento, é o promotor público de Ribeirão Preto. Isso mesmo, o homem pago para fazer valer a lei é que incita ao crime de esbulho’, e isso manifesta ‘um terror para a democracia’ (apenas o significante terror daria espaço para outro artigo). Ao acusar o promotor público com essa formulação, o sujeito é interpelado pela ideologia dominante, que sempre viu os representantes da Lei e os homens do Direito como fiéis escudeiros da/na cadeia de manutenção de privilégios, acordos e negociatas, sempre aliados dos proprietários de terra. Essa ordem cristalizou-se de tal maneira que é prática aceita socialmente (e obrigatória, por que não dizer?) a ação do Ministério Público (e do Estado de Direito) em defesa dos detentores da terra e do capital e, assim, torna-se abominável que uma voz do Ministério Público enuncie de outra região de poder, rompendo o discurso dominante e mobilizando campos semânticos, como função social da terra e impunidade, no cotidiano de seu trabalho.

Tramas deformadas

Por conta disso, a formulação ‘o clima de impunidade que acomete o campo, a Nação assistindo à Constituição sendo rasgada por bandidos sociais, está-se agravando’ deve ser lida no/pelo seu avesso: as desigualdades sociais e o clima de indignação de trabalhadores (sejam do campo, da cidade ou de quaisquer órgãos) têm forçado a leitura da Constituição de um outro viés, interpretando as leis pelo que elas não garantem à maioria, pela mentira que elas virtualizam como direito e pelo pouco que asseguram como acesso prático à cidadania e, por fim, pelo tanto que elas fizeram calar a representação de trabalhadores, escravos, analfabetos e pobres, que muitas vezes nunca viram um código de leis. O mérito do trabalho de alguns juízes e promotores é justamente se apossar dos fragmentos roubados e das brechas caladas dessa Constituição, tornando público o que foi apagado da nossa prática social, rasgado (aí sim, rasgado) ao longo de quinhentos anos de exploração e exclusão social.

Por fim, o novo perfil do acampado é revelado ao longo do texto, que, envolto em ironias, assegura que ‘boa parte dos supostos sem-terra se compõem de desempregados urbanos, pobres coitados, iludidos pela cantilena pseudo-revolucionária do MST’ e que ‘essa deformação fica pequena quando se observa a enorme quantidade de oportunistas imiscuídos entre os invasores’. Quantos carros existem entre os barracos de lona preta não julga o mérito da propriedade e/ou os crimes de seus donos, tampouco, dialoga com a ação judicial que tramita há quatro anos na Justiça. Deslocar, novamente, o ponto nodal da questão agrária para um campo paralelo, tangenciando-se da verdadeira ferida, parece ser uma estratégia discursiva desse sujeito. Ora, para um estudo minimamente sério sobre os novos sem-terra da ‘Califórnia brasileira’, não bastam dois ou três depoimentos soltos, derivados de entrevista encomendada e deslocados da real conjuntura sócio-histórica que afeta o país e a cidade. Também é preciso mais do que um bom enredo.

Nas páginas do discurso jornalístico, uma narrativa de mil e uma noites com direito a seres salpicados de estigmas, a caricaturas densas e a tramas deformadas. Resta-nos esperar pelo próximo capítulo e, quiçá, esboçar um gesto de leitura e interpretação, que contemple os silêncios intervalares tão característicos do funcionamento da linguagem.

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Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo