Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Editorial fala em apagar incêndio, manchete atiça o fogo

Os jornais americanos fazem praça da existência de um fosso intransponível entre a página de editoriais e todas as outras.


O fosso é para impedir que a voz dos donos ecoe no noticiário – nas pautas, na apuração, na edição e na apresentação das matérias. Em suma, o que entra e como entra é de responsabilidade exclusiva dos executivos da redação.


Nem sempre o fosso é tão fundo como dizem, mas que existe, existe. O caso do Wall Street Journal é de livro de texto.


Os seus editoriais de apoio fervoroso ao governo Bush e as suas reportagens investigativas sobre as maracutaias do bushismo, os desastres da guerra no Iraque e as ilegalidades da Casa Branca em nome da guerra ao terror parecem pertencer a galáxias diferentes.


Ainda há pouco, o jornal, no mesmo dia que o New York Times e o Los Angeles Times, revelou que o governo espionava criminosamente zilhões de transações financeiras internacionais, a pretexto de rastrear o dinheiro da Al Qaeda.


Assim que Bush disse que a publicação equivalia a um ato de traição ao país, o Wall Street Journal saiu com um editorial – em apoio ao presidente e desancando a sua própria matéria.


Quem dera as redações brasileiras terem a independência de suas congêneres americanas em relação aos controladores das empresas jornalísticas.


Mas, uma vez na vida – no caso, hoje – vem a tentação de dizer quem dera se a posição de um jornal diante de um assunto pautasse o tratamento que lhe fosse dado nas páginas noticiosas.


O jornal é O Estado de S.Paulo. O assunto, os ataques do PCC e suas repercussões políticas.


Diz o Estadão no fecho do editorial “União contra o terror”: “O importante, hoje, é […] apagar o incêndio em curso. Para tal, a prioridade é a cessação da troca de estocadas entre o presidente candidato, o ex-governador candidato e o governador que o substitui.”


Faltou combinar com os russos, como se diz. Pois a manchete do jornal é nada menos que “Lembo: ‘Lula está desequilibrado’”.


Dentro, a frase se repete no título de uma entrevista de página inteira com o governador.


Lembo é um governador que conta os dias para sair. “Hoje, quinta-feira, faltam 171 dias! Amanhã, sexta, serão 170”, exultou. “Graaaaças a Deus!”


Lembo é também um desbocado. Na Folha ele disse mais ou menos o mesmo. Disse também – e o jornal gravou: “Só malandro quer ser [governador].”


A primeira vez que Lembo virou notícia – quando, sentindo-se só e abandonado por tucanos e pefelistas na primeira ofensiva do PCC – foi por ter desancado a “elite branca”.


Os petistas adoraram.


Depois, fez a maior festa para Lula no Palácio dos Bandeirantes.


Os petistas adoraram mais ainda.


Mas não é para levar o homem a sério – e fui o primeiro a dizê-lo, quando a esquerda babava ovo diante de sua entrevista a Mônica Bergamo, da Folha. [Ver “O governador é um artista”, 18 de maio.]


Sendo, porém, governador de um Estado em transe, ouvi-lo é preciso. O que não é preciso é dar tudo o que ele diz, ainda por cima numa página inteira e com direito a manchete.


Primeiro, porque muito do que diz não tem a menor importância.


Em maio, ressentido com o PSDB e com o PFL de que é membro desde criancinha, falou abobrinhas sobre a tal elite branca para se vingar da cupinchada. Agora, ressentido com Lula, que um dia antes ironizara as suas declarações delirantemente otimistas sobre a situação em São Paulo, resolveu chamá-lo de “desequilibrado”.


Segundo, porque dar em manchete o insulto – este sim, sintoma de desequilíbrio – é fazer exatamente o contrário do que o jornal prega em editorial na mesma edição – o fim do tiroteio entre os políticos. “Esquecer a disputa eleitoral” são as palavras finais do texto.


Deixem-me explicar melhor. Pelo que escrevi acima sobre a imprensa americana, obviamente defendo para a mídia brasileira a mesma autonomia da redação em face das opiniões dos donos.


Mas, neste caso excepcional, antes prevalecesse a página de editoriais. Choca o contraste entre a sensatez da posição expressa no comentário e a insensatez, para não dizer sensacionalismo, da manchete.


Manchete certa é a da Folha: “Ataques deixam 2 milhões a pé”. Ela põe a vida real, o interesse do leitor, acima do blablablá eleitoreiro – no caso, as alegações de tucanos e pefelistas segundo as quais o PT pode ter parte com o terrorismo do PCC, para, afinal, tirar votos de Alckmin em outubro.


Sobre isso, a propósito, o melhor do dia está nas colunas de Dora Kramer, no Estado, e de Merval Pereira, no Globo, embora a partir de ângulos diferentes.


Dora: “O bate-boca entre políticos do governo e oposição seria apenas ridículo não fosse antes uma dramática expressão da impotência do país frente ao crime organizado. Trocam acusações que já frequentam o delírio e apontam soluções inúteis porque ninguém – candidatos, partido, sociedade, tem a mais pálida idéia do que fazer.”


Merval: “Não deve ser entendido como um simples escorregão de linguagem o comentário do presidente do PFL, Jorge Bornhausen, de que não se surpreenderia se o PT estivesse por trás dos ataques terroristas que mais uma vez atingiram São Paulo. […] Por mais que se considere inadequada a insinuação, ela faz parte de uma estratégia política do PFL para radicalizar a campanha eleitoral contra Lula, um trabalho de ‘desconstrução’ de sua imagem política…”


O Globo, aliás, reduziu às suas merecidas proporções o que chamou de “PT e PSDB em guerra”. De quebra, saiu com um furo.


O repórter Alan Gripp apurou junto ao Ministério Público, em Brasília, que a ordem para os ataques passou por advogados. É a manchete do jornal.


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