Em sucessivos textos deste blog foi dado o benefício da dúvida à TV Globo quanto ao teor da série de reportagens sobre o Rio São Francisco, que acaba de culminar, minutos atrás, com uma matéria do Jornal Nacional inequivocamente “chapa-branca”. Ouvido em entrevista pelo Observatório, o repórter José Raimundo disse ontem que a reportagem tinha adotado como critério a isenção jornalística (ver post ‘Repórter diz que Globo não opina sobre transposição’). Mas quem tinha razão era o jornalista e ex-deputado federal Marco Antônio Coelho. Na quarta-feira, ele havia previsto que a Rede Globo adotaria na série de reportagens tom francamente favorável ao projeto (ver post ‘Jornal Nacional omite protesto de bispo’).
A reportagem é desequilibrada. O tempo dedicado aos que são favoráveis é maior do que o concedido aos adversários do projeto – que o governo Lula pretende iniciar imediatamente com recurso a batalhões de engenharia do Exército, o que lhe permitirá driblar uma licitação. Só uma autoridade foi ouvida, o coordenador do projeto. O professor de filosofia Roberto Malvezzi, que já havia aparecido na reportagem de terça-feira, faz um alerta quanto ao potencial daninho da obra.
A narrativa do repórter José Raimundo, que estará no site da Globo daqui a pouco (*), é enviesada. Ele não usa nenhum tipo de construção condicional: “Se o projeto for realizado”, nem sequer “Quando o projeto estiver concluído”. Não. Ele é peremptório. Na sua linguagem o projeto é uma realidade incontrastável, fato consumado. Em contradição com a apresentação da reportagem feita por Fátima Bernardes: “Um projeto que divide opiniões”. Na reportagem da Globo, tal como realizada e editada, não existe tal divisão. Existe um parti-pris. Talvez por pura coincidência, um parti-pris governista. Numa parte não reproduzida da entrevista dada ao Observatório, José Raimundo disse que os oito estados afetados pela obra estão divididos meio a meio: metade a favor, metade contra. Mas essa informação não foi dada aos telespectadores.
O Observatório da Imprensa não tem a pretensão de discutir tecnicamente a questão, não é nem a favor nem contra o projeto. É a favor de uma discussão honesta, equilibrada, exaustiva. Nada disso, infelizmente, foi proporcionado pela reportagem desta noite do Jornal Nacional. Por sinal, o noticiário apenas mencionou, sem dar imagens, a greve de fome do bispo de Barra, Dom Luiz Flávio Cappio, em protesto contra a transposição. O apresentador William Bonner leu um texto segundo o qual o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Geraldo Majella, se disse contra a greve de fome como forma de manifestação e esclareceu que a CNBB é contra o projeto da transposição das águas do São Francisco. Ontem, o Jornal Nacional tinha reproduzido declarações do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, segundo as quais ele ouvira de Dom Geraldo Majella manifestação a favor da obra.
Como a Globo e a mídia, de modo geral, podem contribuir para um debate mais proveitoso? Evitando exatamente a manipulação, abrindo o dossiê, deixando que se manifestem os diversos pontos de vista. Isso pode resultar não em desistir do projeto, mas em melhorar sua qualidade. Não existe nenhum projeto imune a revisão. Ouvir o outro pode ajudar quem ouve a entender melhor aquilo que propõe e realiza.
(*) Até 15h30 de 1 de outubro ainda não havia sido colocada no site.