Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um cacique intocável na aldeia de McLuhan

(Foto de Claudio Schwarz na Unsplash)

Conforme largamente noticiado pela mídia internacional, no sábado, 13 de abril deste ano, numa crise aguda de esquizofrenia, um australiano matou seis pessoas e feriu outras doze, usando uma faca, num shopping center de Sydney. Ao avançar em direção a uma policial que tentou detê-lo, ele foi abatido por ela com um tiro.

Sobre este episódio, escrevi o artigo “Uma Faca e a Liberdade de Expressão”, publicado na semana seguinte neste portal. Meu enfoque foi o tratamento dado ao fato não só pela mídia, mas especialmente pelas redes sociais.

Cerca de uma hora após o evento, o subcomissário da polícia do Estado informou que não havia nenhuma evidência nem indício de que o ocorrido tivesse sido um ato de terrorismo. No entanto, este não foi o enfoque dado ao caso por dezenas de canais. No X, um influencer postou para seus quase um milhão de seguidores “a primeira foto do terrorista que matou algumas pessoas em Sydney”. E continuou: “Ele esfaqueou numa área de judeus bem próxima a um restaurante israelense”. Ou ainda, na Inglaterra, a âncora de um noticiário de TV noticiou para seu meio milhão de seguidores, também no X: “… outro ataque de terror por outro terrorista islâmico”. 

Dois dias depois do incidente, com imagens ainda circulando pelas redes, o governador do Estado teve uma reunião com representantes das plataformas e discutiu com seus representantes os mecanismos de bloqueio e a retirada de circulação dos vídeos feitos durante o atentado. A Meta agiu de imediato e bloqueou as imagens.  

A facada seguinte

Dois dias depois, na segunda-feira 15 de abril, por volta de 19h15, um rapaz de 16 anos deu diversas facadas no bispo Mari Emmanuel, que celebrava uma missa numa igreja Cristã Ortodoxa Assíria, no bairro de Wakeley, 34 quilômetros do centro de Sydney. Foram também feridos um padre e outro participante. Recebendo diversos golpes, o bispo – que acabou perdendo a visão do olho direito – em poucos dias recebeu alta do hospital.

O sermão estava sendo transmitido ao vivo pela internet. O atacante foi subjugado pelos participantes da missa e entregue à polícia, que chegou de imediato. Graças a essa transmissão, em questão de minutos centenas de outras pessoas, a maioria homens, rodearam a igreja para tentar tomar o agressor da guarda da polícia. O rapaz ficou detido pela polícia por cerca de uma hora, e mais de 100 policiais foram mandados para o local. A multidão chegou a agredir alguns agentes e causou danos a alguns veículos. Finalmente o detido foi também levado para o hospital com ferimentos na mão.

O bispo por vezes criticava outros ramos mais liberais das religiões cristãs, assim como também o judaísmo e o islamismo. Num vídeo feito durante o ataque, ouve-se a fala do rapaz: “Se ele não tivesse insultado o meu profeta, eu não teria vindo aqui”.  Baseada nesses termos – além de outras infrações menores do rapaz – a polícia qualificou essa sua ofensa como um caso de “extremismo de motivação religiosa”.

O “X” do problema

Em vista do vasto material circulando nas plataformas, no dia 16 de abril a Comissária Julie Inman Grand, da Australia eSafety, determinou que X e Meta retirassem os vídeos dos seus canais. “Isto é realmente um conteúdo devastador e que causa danos emocionais, mentais e psicológicos”. Ela agiu dentro das normas do Online Safety Act australiano e determinou essa retirada dentro de 24 horas. A Meta, de novo, acatou o pedido. Mas o X preferiu outra abordagem.

Num documento de 19 de abril, a equipe de Global Government Affairs do X disse que “a ordem da Comissária Grant não estava dentro do escopo das leis australianas” e que certas postagens a ser removidas “não violam as regras do X sobre discurso violento”. Enquanto outras plataformas, como Google, Microsoft, Snap e TikTok, obedeceram à decisão da comissária, a mesma equipe do X declarou que: “… X respeita o direito de um país aplicar suas leis dentro de sua jurisdição, donde a comissária do eSafety não tem autoridade para ditar qual conteúdo os usuários do X podem acessar globalmente.” E prossegue: “Nós vamos contestar este approach ilegal e perigoso diante de um tribunal. Ordens de retirada global de postagens vão contra os princípios de uma internet livre e aberta e ameaçam a liberdade de fala em toda parte.”

Segundo matéria do Time Magazine de 20 de abril: “Acabando de sair de uma altercação com um Juiz da Suprema Corte no Brasil, Elon Musk está agora comprando briga com o primeiro-ministro da Austrália.” O que ocorre é que tanto a legislação quanto os tratados subscritos pelas plataformas digitais se aplicam à área geográfica deste país e não ao resto do mundo. O primeiro-ministro australiano disse em entrevista que “… ninguém quer censura aqui. O que queremos é o uso de um pouco de sensibilidade… e isso certamente não é pedir demais”. Em resposta, Musk resumiu a coisa como “… um absurdo um só país tentar censurar o mundo inteiro”.

Por aqui fico a imaginar Umberto Eco e Marshall McLuhan sentados numa mesa de botequim, tentando entender ou quantificar o alcance intelectual (se é que isso existe…), a postura ética, mais essa forma de soberania que hoje caracteriza esses poucos – mas cada vez mais poderosos – caciques do que veio a se tornar essa palpitante “aldeia global”.

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Marcus Cremonese é graduado em jornalismo pela FACHA, Rio de Janeiro. Teve matérias publicadas no Jornal do Brasil e no O Tempo, de Belo Horizonte. Mora na Austrália e publicou no Journal of Audiovisual Media in Medicine (JAMM), de Londres. Produz ilustrações científicas para livros e revistas médicas.