Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A nova função do jornalismo na era das “várias verdades”

(Foto: Engin Akyurt por Pixabay)

Até a chegada da internet, o grande paradigma do jornalismo era a preocupação com a verdade, mas a partir do momento em que passamos a ter que conviver com “várias verdades” na era digital, surgiram inevitáveis questionamentos ao discurso e à estrutura da profissão. A nova realidade da comunicação e informação está nos forçando a ser mais conselheiros do que vendedores de notícias, uma mudança que implicará o desenvolvimento de novas rotinas, regras e valores.

A busca da verdade como atividade profissional estava ligada ao objetivo de colaborar no surgimento de “bons cidadãos”, categoria social indispensável ao funcionamento de sistemas políticos baseados no liberalismo econômico e na democracia política. Mas quando as novas tecnologias digitais de comunicação e informação criaram uma avalanche noticiosa na internet, surgiram o que se convencionou chamar de “várias verdades’’, ou seja várias percepções e opiniões sobre um mesmo dado, fato ou evento.

Com isto, os jornalistas são jogados num novo ambiente informativo onde deixam de ser os porta-vozes do que é certo ou errado em matéria de informação publicada, para funcionar como curador de notícias. Curador (1) é aquele profissional que ajuda as pessoas a identificarem qual das “várias verdades” é a que melhor atende as necessidades individuais ou coletivas. Foi o próprio público que passou a exigir este tipo de aconselhamento, como mostra a multiplicação de influenciadores na internet.

A superoferta de notícias na internet disponibiliza em média dois milhões de artigos inormativos online produzidos por grandes empresas jornalísticas e de marketing, segundo dados da empresa Userarch. Fica evidente a enorme sobrecarga de trabalho e a responsabilidade de fazer escolhas envolvendo temas cada vez mais complexos e diversos. Este novo contexto profissional é complicado ainda mais por fenômenos novos como as fake news e a desinformação gera inevitáveis conflitos com as rotinas, regras e valores ainda vigentes na maioria das redações.

Segundo a pesquisadora norte-americana Nikki Usher, estamos começando a viver uma “democracia pós-imprensa”, um regime onde os jornais continuarão a existir e ser importantes, mas com uma função social diferente da atual. Menos um negócio lucrativo e mais um equipamento comunitário, similar a uma assessoria jurídica ou curadoria de consumo.

Do cidadão bem-informado ao cidadão comunicador

Mas, seja qual for a nova função da imprensa na era digital ela terá que achar soluções para a crise no modelo de negócios responsável pelo fechamento de jornais, revistas e emissoras de rádio. Aqui no Brasil, 17 publicações fecharam as portas entre 2018 e 2021 por conta de dificuldades financeiras. Só em 2021, foram 12 os jornais, revistas e emissoras de rádio que saíram do mercado, quase um por mês. Nos Estados Unidos, 2.500 jornais deixaram de circular desde 2005, um fenômeno cuja intensidade é maior entre publicações locais que, em 2023, desapareceram ao ritmo de 2,5 jornais por semana. Os dados levantados por pesquisadores da Faculdade Medill de Jornalismo, da Universidade Northwestern , em Illinois, Estados Unidos indicam também que cerca de 1/3 dos 24 mil jornais locais norte-americanos também desaparecerão até o final deste ano.

A sobrecarga de trabalho dos profissionais que ainda estão empregados e o contínuo fechamento de jornais mostram que a imprensa convencional encontra cada vez mais dificuldades para atender seu objetivo de formar cidadãos bem-informados. As consequências destas dificuldades podem ser medidas na queda da credibilidade na imprensa no mundo (2) e o aumento do chamado negacionismo informativo (3), pessoas que não se interessam mais por notícias.

Como os sistemas de disseminação de notícias já começaram a mudar em consequência de inovações tecnológicas, esta transformação incide diretamente sobre o modelo de participação dos cidadãos e a função exercida pelos jornalistas. O “bom cidadão” num regime democrático está deixando de ser avaliado pelo grau de consumo de informações e notícias e sim pela intensidade com que promove a circulação destas informações e notícias no ambiente social onde está inserido. O cidadão bem-informado está deixando de ser o paradigma da sociedade para ser substituído pelo cidadão comunicador, aquele que promove o bem-estar geral por meio da circulação de informações.

Já o jornalista, está deixando de ser uma espécie de empacotador de dados, fatos e eventos para transformá-los em notícia capaz de atrair a atenção do público e, portanto, vendável a anunciantes. Sua função como participante insubstituível na qualificação dos fluxos de informações torna-se ainda mais relevante na era digital, pois cabe aos profissionais papel chave na checagem da veracidade, relevância e pertinência das ‘várias verdades’ a que uma comunidade está sujeita no caos informativo das redes sociais na internet.

Notas

[1] A curadoria é praticada em várias outras atividades, especialmente no campo artístico quando um ou mais especialistas recomendam obras para exibição pública. Há os curadores de museus, de exposições e de conteúdos em textos, vídeos e áudio. Existem também os curadores de pessoas como menores de idade ou portadores de algum tipo de deficiência mental.

[2] Segundo o Digital News Report 2022, produzido pelo Instituto Reuters de Jornalismo, 48% dos brasileiros confiam na nossa imprensa, um índice pouco superior ao da média mundial que é de 42%. Nos Estados Unidos, míseros 26% acreditam nas notícias publicadas.

[3] Já a versão 2024 do Digital News Report afirma: “…verificamos um aumento seletivo na rejeição de notícias. Em torno de 4 em cada 10 (39% das pessoas consultadas) dizem hoje que algumas vezes ou frequentemente evitam ler notícias – 3% a mais do que na média do ano passado (2023) – com aumentos mais significativos no Brasil, Espanha, Alemanha e Finlândia.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.