A manchete da edição de domingo (12/12) da Folha de S.Paulo, sobre a ineficiência no controle de fontes radioativas no Brasil, é um desses alertas fundamentais para se prevenir catástrofes irreversíveis segundo uma lógica cultivada por nossas avós – a que reza que a melhor maneira de resolver um problema grave é tentar evitar que ele aconteça.
O material levantado pela Folha, distribuído ao longo de quatro páginas, é de muito boa qualidade e deveria ser mais freqüente no jornalismo impresso, mesmo com alguns problemas que merecem comentário.
As deficiências estão relacionadas à ausência de jornalismo interpretativo, mais especificamente de contextualização histórica, para fornecer o que se pode chamar de inteligibilidade possível sobre um determinado assunto. Neste caso, a energia nuclear.
O primeiro problema é que, sem contextualização, o material contribui para certa repulsa à energia nuclear. E este é um recurso estratégico em inúmeras áreas de atividade, incluindo um domínio científico que um país com o perfil do Brasil não pode abrir mão, a partir da lógica fácil de um ambientalismo pouco crítico.
Sem satisfações
A energia nuclear vai além da construção de bombas atômicas, ainda que Albert Einstein, o homem que escreveu a fórmula de transformação de massa em energia (E = m.C2), tenha aconselhado, no verão de 1939, o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt a construir a primeira delas para enfrentar a ameaça nazista, com potencial de desenvolvimento dessa arma.
Mas Einstein foi, desde sempre, um determinado pacifista – o que contribui para a controvérsia sobre a energia nuclear. Especialmente após o lançamento das duas bombas sobre o Japão, volatizando Hiroshima e Nagasaki, em 1945.
Relacionar a energia nuclear diretamente a bombas atômicas, no entanto, equivale a equiparar aviões exclusivamente a armas de guerra, como máquinas de destruição, o que, obviamente, não é verdade. Ainda que existam aviões bombardeiros.
Outra questão que deve ser articulada com contextualização histórica é que, no Brasil, a imagem controvertida da energia nuclear está relacionada à maneira como esse caso foi tratado na República dos generais: em regime fechado, sem discussões públicas nem os esclarecimentos indispensáveis.
Com isso, os responsáveis por instituições envolvidas com pesquisa nessa área se habituaram a não dar qualquer satisfação social. O que, aparentemente, não aprenderam a fazer até agora.
Donos da verdade
O programa espacial brasileiro, por exemplo, a partir de certo momento, foi atrelado a um projeto militar para a construção de um míssil capaz de transportar uma bomba atômica, num litígio geopolítico com a Argentina que a guerra das Malvinas contribuiu para sepultar.
Um poço para testes nucleares foi escavado na Serra do Cachimbo, no Brasil Central, fechado com uma simbólica pá de cal pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, num dos poucos momentos lúcidos de sua efêmera e atormentada administração.
Os militares tomaram essas iniciativas sem a mínima consulta à sociedade, representada especialmente pela comunidade científica. Que também não foi ouvida pelo general-presidente Ernesto Geisel para estabelecer, nos anos 1970, o acordo nuclear com a Alemanha.
Os militares se acreditavam de posse de toda a verdade. O resultado desse distúrbio psicótico ainda traumatiza o país, embora boa parte da população, absorvida pelas demandas do dia-a-dia, não tenha condições de refletir sobre as conseqüências desses acontecimentos.
Daí uma explicação possível para uma pretensa despolitização da sociedade nacional, detectada por pesquisas também divulgadas nos últimos dias.
Relatos de náufragos
Que o controle de fontes radioativas no Brasil não é seguro, conforme denuncia a Folha, é uma verdade inequívoca. Mesmo que o presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), Odair Dias Gonçalves, tenha pretendido dizer o contrário.
Num ato falho, desses que trazem o gozo aos psicanalistas, Gonçalves diz, na pág. A 13, que ‘a fiscalização é nossa prioridade zero’. Prioridade zero, como aprende uma criança que se inicia em aritmética, é nenhuma. Certamente o presidente da CNEN quis dizer que ‘a fiscalização é nossa prioridade número 1’.
No cargo que ocupa, não poderia ter cometido esse equívoco. A menos que a frase seja entendida como puro ato falho, o que é mais provável. Mas dá no mesmo, em termos de se interpretar como fala nada confiável.
Outra questão certamente relevante, ainda que ausente de abordagens como essa, é que a negligência, no Brasil, não é um caso pontual e específico de uma área como a da energia nuclear.
Nossa negligência é estrutural. O que não significa dizer que este país seja inviável. Equivale a dizer, isso sim, que essa nossa mentalidade deve ser revista criticamente, para que possa ser transformada.
Temos raízes históricas capazes de sugerir a origem dessa nossa acomodação irresponsável. E o material publicado pela Folha traz vários exemplos (pág. A 12) dessas ocorrências no cotidiano, capazes de nos atingir coletiva ou pessoalmente, a qualquer momento.
Quanto às razões históricas, chegaram aqui, literalmente, com as naus que (com algumas caravelas) formaram a esquadra de Pedro Álvares Cabral, quem fez o descobrimento formal do Brasil.
Das naus portuguesas que faziam a chamada Carreira das Índias, no século 16, pelo menos 30% foram ‘tragadas pelo mar’, para usar a linguagem da época.
A razão dessas perdas estava, com uma freqüência assustadora, na manutenção irresponsável dessas embarcações: calafetagens malfeitas, apodrecimento de estruturas por falta de controle devido, pilotos absolutamente incompetentes e indisciplinados, incorreções e desencontros entre as cartas de navegação, ganância de empresários (os comerciantes) que sobrecarregavam as naus além dos limites de segurança, sem que o Estado português legislasse eficientemente sobre esses abusos. Desvio de alimentos, água, vinho que se adicionava à água para evitar deterioração e outras picaretagens antigas.
Quem se interessar pelo assunto e quiser conhecer um pouco dessas nossas heranças ibéricas pode recorrer ao fascinante História Trágico-Marítima, uma compilação de relatos de naufrágios ao longo do século 16 feita por Ricardo Gomes de Brito, no século 18, a partir do que registraram os sobreviventes dos infortúnios.
Equipamentos irregulares
Um leitor menos tolerante pode argumentar que não faz sentido comparar riscos de naus do século 16 com emprego de energia nuclear no século 21.
E de fato não faz, se a compreensão do leitor for linear, sumária e apressada. Neste caso temos que levar em conta ao menos dois fatos: o primeiro deles é que a atividade marítima para Portugal naquele momento era absolutamente estratégica. A única, na falta de terras para a agricultura, recursos minerais e conhecimento técnico para a indústria que, pouco depois, explodiria na Europa com a Revolução Industrial.
Outro argumento é que qualquer fato só pode existir historicamente no interior de um processo. Desde um poderoso pulso de energia que chega das profundezas do espaço, resultado da morte de uma estrela longínqua, até o comportamento de um povo.
Tudo é moldado pela História. Social ou Natural.
A Folha registra casos que caracterizam negligência envolvendo energia nuclear no Brasil, pretensamente contrapostas pela CNEN (pág. A 12) .
É o caso do transbordamento de efluentes contendo material radioativo na mina de Caetité, Bahia, neste ano que a CNEN tenta justificar com ‘excesso de chuva, muito além de índices históricos na região’. É um daqueles argumentos que comprometem mais que o silêncio. Uma instalação como a de Caetité deve estar preparada para imprevistos, os justamente chamados ‘acidentes da Natureza’.
Entre outros casos reaparece o Hospital de Base, em Brasília, onde Tancredo Neves foi vítima de infecção. Em 2002 se descobriu que essa instituição operava equipamentos de radioterapia irregulares, expondo pacientes a doses perigosamente indesejáveis. Ou outro hospital, a Santa Casa, em Belo Horizonte: em 2002, uma fonte radioativa de césio 137 foi deixada no útero de uma paciente, por falta de um detector de radiação.
Não é ficção
No cotidiano deste país existem milhares de outros exemplos que evidentemente não seriam todos eliminados. Mas poderiam e deveriam ser, em grande número, minimizados por uma consciência mais responsável.
No túnel da Mata Fria, na Serra da Cantareira (entre São Paulo e Mairiporã, na rodovia Fernão Dias), por exemplo, uma placa colocada há dois anos tenta justificar a falta de iluminação atribuindo o fato ‘a ação de vândalos’ que roubaram a fiação. Aqui, a ação de quadrilhas é contraposta pela negligência do Estado. A lógica diz que a segurança do motorista exige que o túnel seja iluminado e não que se escreva uma justificativa para a omissão oficial.
A energia nuclear, evidentemente, não pode ser conduzida com o descaso, centralismo e superposição de atribuições pela CNEN, como denuncia a Folha. E nem interpretada como ameaça desnecessária pela sociedade, por falta da inteligibilidade possível que deve emergir dessas situações. Até porque, como escreveu James Lovelock, físico e ambientalista, pai da Teoria Gaia, em artigo recente no jornal inglês The Guardian, reproduzido pela Folha, a energia nuclear é uma das poucas alternativas para se amenizar o efeito-estufa.
O aquecimento global, produzido por atividade humana envolvendo a utilização de energia, ameaça ser o maior acidente ambiental da história da humanidade.
A omissão em relação a fontes radioativas também pode permitir a criação de armas letais, as ‘bombas sujas’. Foi o que aconteceu em Goiânia, em 1987, quando uma dessas fontes foi esfacelada a golpes de marreta por catadores de ferro-velho e o césio 137, radioativo, espalhado por uma área enorme.
Não foi nenhuma ficção. Nem um risco de vir a acontecer. Já aconteceu e resultou da absoluta negligência dos órgãos responsáveis. A mesma negligência que a Folha volta a denunciar.