No cenário nacional, duas pesquisadoras têm se destacado pela importância de suas contribuições à reflexão acerca da Comunicação Pública. Neste texto, destacamos, a abordagem desenvolvida por Heloisa Matos e Maria Helena Weber, por acreditarmos que ambas conferem destaque ao entendimento da Comunicação Pública a partir da caracterização das disputas que ocorrem em redes de esferas públicas sustentadas por múltiplos públicos e atores sociais e institucionais. Ao partirem das considerações do pragmatismo de Jürgen Habermas, as pesquisadoras revelam a centralidade da busca coletiva pelo interesse público centrado no processo de justificação pública de pontos de vista, amparados por razões que são amplamente discutidas e revistas por todos. Essa perspectiva fortalece a democracia participativa, conciliando demandas particulares e coletivas, permitindo a elaboração da autonomia relacional dos agentes e possibilitando a revisão constante dos parâmetros normativos que orientam as interações e comunicações estabelecidas entre as diferentes esferas e agentes que configuram o espaço público político e suas dinâmicas de promoção de justiça social.
Heloiza Matos (2006, 2009, 2011, 2013, 2019) sustenta que a comunicação pública se delineia a partir de situações paritárias de discussão e negociação entre diferentes atores sociais. À frente do Grupo de Pesquisa em Comunicação Pública e Comunicação Política (ECA-USP), Matos (2011, 2013) desenvolve possibilidades de interface entre a comunicação pública e a comunicação política salientando que ambas abordam o processo de comunicação instaurado em uma rede de esferas públicas que envolve o Estado e diferentes setores da sociedade, privilegiando debates, negociações e tomadas de decisão relativas a questões de interesse coletivo.
Por sua vez, as pesquisas desenvolvidas por Maria Helena Weber (2017, 2023) junto ao Observatório da Comunicação Pública (OBCOMP), têm caracterizado a comunicação pública como processo interacional que articula múltiplos atores, entrelaçando a comunicação institucional do Estado, a comunicação midiática e a comunicação social de modo a fortalecer a democracia. “Identificar o movimento permanente das redes de comunicação pública seria o processo necessário para a compreensão e avaliação da qualidade das democracias (WEBER, 2017, p.25). Para ela, a comunicação pública é uma “instância de defesa e resistência da democracia, amparada e constituída pelo debate público ampliado” (2017, p.23). Uma comunicação pública capaz de zelar pela defesa da democracia se ampara em processos interacionais guiados, sobretudo, pela visibilidade [1], pela participação, pelo debate e pelo interesse público.
Comunicação Pública e redes comunicacionais de negociação do interesse coletivo
A expressão “comunicação pública”, para ambas, seria utilizada para caracterizar um tipo específico de interlocução pautada na troca argumentativa reflexiva e recíproca que configura redes de esferas públicas (não necessariamente articuláveis). A perspectiva comunicacional e democrática de Jürgen Habermas (1997; 2006) sobre a constituição de esferas públicas via argumentação racional e inclusiva parece pautar a reflexão atual de autores brasileiros (MIOLA e MARQUES, 2017; LOCATELLI, 2022; MASSUCHIN et al., 2023) que discutem a comunicação pública e buscam aprimorar o conceito em sua dimensão prático-epistemológica. Esses autores revelam como a comunicação pública abrange uma rede complexa e movente de públicos, instituições e agentes políticos que se articulam comunicacionalmente e redefinem constantemente formas de conversação, debate e justificação recíproca. A inspiração trazida pelas obras de Habermas se manifesta na discussão que realizam a partir da interface entre os conceitos de democracia, esfera pública, justiça e interesse público. Assim, uma definição de Comunicação Pública amparada por essas noções permite identificar redes articuladas de agentes sociais e políticos, que definem estratégias e regulam espaços de jogo nos quais poderes hegemônicos e contra-hegemônicos negociam seus interesses e modificam as coordenadas da experiência coletiva que define e busca soluções para problemas públicos.
O entendimento habermasiano do processo comunicativo seria apenas uma parte do conceito de comunicação pública, que abrange, entre outros, uma ideia vinculada a princípios como visibilidade, inclusão, accountability e participação nos âmbitos estatal, político, organizacional e midiático. A comunicação pública abrange a comunicação feita pelas instituições estatais, tornando visíveis as ações e decisões tomadas em esferas políticas mais afastadas dos espaços cotidianos de conversação cidadã. De modo complementar, a comunicação pública abrange os processos de debate que se dão nas franjas da sociedade civil, nas experimentações de diferentes públicos que cooperam para elaborar soluções para questões de justiça, ao mesmo tempo em que constituem sua autonomia política. “A comunicação pública pode ser identificada pela intensidade das vozes e manifestações dos públicos organizados em rede” (WEBER, 2017, p.44). Sob esse aspecto, uma comunicação pública pautada pelos ideais de construção de redes de esferas públicas nas quais os debates sejam marcados pela publicidade, inclusividade, paridade, igualdade e uso racional da linguagem apresenta certamente características muito inspiradoras e passíveis de sedimentarem modelos de negociação e resolução de conflitos que associam autonomia política e elaboração do interesse público.
A importância das alianças e articulações
Segundo as abordagens de Matos e Weber, a Comunicação Pública requer a construção de articulações e alianças (ainda que provisórias) entre atores do Estado, da sociedade, do mercado, da imprensa e das mídias digitais, por meio das quais nos engajamos em uma revisão contínua de nossas necessidades, interesses e condições desiguais de vulnerabilidade. Uma dessas alianças a serem construídas é com as instituições do Estado, uma vez que elas e seus agentes possuem legitimidade, recursos e alternativas para resolverem os problemas identificados nas redes de esferas públicas. A comunicação pública relaciona-se ao modo como o Estado se articula ou não com entidades do mercado, das mídias, das redes digitais e da sociedade civil, valorizando ou não a opinião pública e os públicos que integram as esferas de discussão ampliadas e que precisam das informações oficiais para se posicionarem reciprocamente na disputa discursiva.
As recentes reflexões elaboradas por Matos (2019), Weber e Locatelli (2022) acerca da interseção entre a busca do interesse público e a experiência de formação política dos agentes deliberativos nos estimula a pensar como o processo de justificação pública pode estabelecer interfaces entre aquilo que define a singularidade das demandas dos sujeitos e aquilo que todos podem identificar como pertencente à esfera comum de busca por uma sociedade democrática, que articule as diferenças sem homogeneizá-las.
A construção do espaço político da discussão coletiva é o que orienta a busca pelo interesse comum através de práticas de justificação recíproca em torno da definição de problemas para os quais diferentes públicos devem buscar entendimento (MATOS e GIL, 2013). As conversações cívicas que alimentam redes de esferas públicas configuradas pela prática da ação comunicativa buscam conferir dignidade aos interlocutores, valorizando as interações e codependência como fontes de justiça social. Os interlocutores, tomados enquanto sujeitos políticos, não estão prontos a priori para as argumentações coletivas em prol do interesse comum. Nem mesmo tal interesse está definido previamente: há um processo comunicativo de cocriação entre a subjetivação e o comum que articula uma comunidade.
É esse entendimento da comunicação pública enquanto processo de ponderação conjunta do interesse próprio (experiência) e a orientação para o bem comum (experimentação e solidariedade colegisladora) que orienta a prática comunicativa que sustenta as redes de deliberação e as esferas públicas de cooperação democrática, nas quais os atores negociam definições da situação em que se encontram, interpretando reciprocamente avaliações capazes de conduzi-los eticamente a horizontes morais momentaneamente partilháveis (HABERMAS, 2022).
A Comunicação Pública e a mídia
Como salienta Weber (2017), a amplitude e os limites da comunicação pública se expandiram e projetaram públicos nacionais e internacionais que elaboram redes nas quais realizam ações de monitoramento, participação ampliada, combate às informações falsas e criação de práticas justificação recíproca e de escrutínio que inibem a comunicação sistematicamente distorcida e a ação indefensável de instituições e atores políticos e cívicos.
Matos e Weber destacam o papel central que a mídia desempenha para acolher e fazer circular as opiniões geradas em diferentes processos comunicativos que se estabelecem no sistema deliberativo ampliado. Conforme a análise recente de Habermas, a mídia possui uma função de “orientação dos públicos diante de uma diversidade de perspectivas e interpretações concorrentes, organizando núcleos de interpretação intersubjetivamente compartilhados e geralmente aceitos” (2022, p.55). A mídia não tem uma autoridade final sobre a ordenação dos quadros de sentido do mundo da vida, mas seu trabalho é essencial para oferecer aos indivíduos e aos públicos elementos de articulação de suas experiências com as experimentações coletivas destinadas a resolver problemas morais de justiça.
Notas
[1] O conceito do “paradoxo de visibilidade” evidencia como a busca por visibilidade pode ser, ao mesmo tempo, importante para a legitimidade e transparência das disputas e justificações públicas, mas pode também acarretar sérios danos à democracia quando atores buscam privilegiar sua reputação em detrimento do bem coletivo. Assim “o investimento na Comunicação de Estado também permite a promoção de governantes e partidos” (WEBER, 2017, p.34).
Referências
HABERMAS, J. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e da política deliberativa. Berlin: Suhrkamp, 2022.
MATOS, Heloiza. Comunicação política e comunicação pública. Organicom – Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas, São Paulo, ECA-USP, n. 4, p. 59-73, 2006.
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MATOS, Heloiza. Comunicação pública, esfera pública e capital social. In: DUARTE, Jorge (Org.). Comunicação pública: estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas, 2009. p. 47-58.
MATOS, Heloiza. Comunicação Pública: interlocuções, interlocutores e perspectivas. São Paulo: ECA/USP, 2012.
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MATOS, Heloiza; GIL, Patrícia (orgs.). Comunicação, políticas públicas e discursos em conflito. São Paulo: ECA-USP, 2019.
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MASSUCHIN, Michele et al. Comunicação Pública na teoria e na empiria: aspectos da produção científica brasileira recente. Anais do 32º Encontro Anual da Compós, Universidade de São Paulo (USP), 2023.
MIOLA, Edna; MARQUES, Francisco Jamil. Por uma definição de Comunicação Pública: Tipologias e experiências brasileiras. Anais do VII Congresso da Compolítica. Porto Alegre, 2017.
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Ângela Marques é professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais.
Carol Casali é professora da Universidade Federal de Pelotas. São, respectivamente, coordenadora e vice-coordenadora do GT Comunicação Pública e Institucional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).