Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Formas de ação na pós-modernidade

Como médico psicanalista e mestre em Psicologia Clínica, mas, antes de tudo como um apaixonado praticante diário de psicologia, psiquiatria e psicanálise há 30 anos, foi com perplexidade que li a matéria ‘Lama à brasileira’, publicada na revista de O Globo (28/11). ‘Psicanalistas buscam no budismo novas maneiras de ser [sic] mais solidários e compreender os outros’, noticia o subtítulo da reportagem; o texto explica que a contribuição se daria ‘com um inteligência chamada bodicitta, que consiste em ver o que é bom ou não para os outros e como podemos ajudá-los’. O gaúcho Lama Padma Samten, que coordenou um seminário sobre o tema para uma platéia de profissionais da psicanálise, é citado: ‘O ponto central do budismo é a capacidade de olhar para o outro e oferecer alguma coisa’, diz. O moderador do encontro, o psicanalista Benílton Bezerra Jr., afirma aos colegas que o sábio é o Lama, enquanto ele, Benílton, está ‘na lama’.

Psicanalistas podem compartilhar sua compreensão sobre a existência humana com outras visões de mundo, inclusive com o budismo. Assim como o Lama Padma Samten, não estranho o vínculo entre o budismo e a psicanálise. Ao contrário, vejo inúmeras afinidades e diferenças de modo de abordar as questões relativas ao sofrimento humano e à busca de integração, felicidade e solidariedade.

Ao contrário da lama, onde em reconhecimento sincero disse estar o psicanalista Benilton Bezerra – que muitas contribuições trouxe ao longo dos anos à prática de uma psicanálise mais efetiva -, a psicanálise vem se desconstruindo e reconstruindo, transformando-se, desde sua criação no século 19, e com mais intensidade nos últimos 50 anos.

Ou será que temas como o da análise mútua, proposta pelo psicanalista húngaro Sandor Ferenczi nos anos 1930, não foram lidos ou entendidos pelos psicanalistas? Cito este tópico, pois ele diz respeito, precisamente, a um dos mais importantes psicanalistas desde sempre, interlocutor direto de Freud e ‘seu discípulo mais querido’.

A presença do Outro

A análise mútua foi vista com um radicalismo inaceitável, quando em outra compreensão poderia ser entendida como humildade e renúncia ao saber, colocando o psicanalista em posição não-hierarquizada, e de compartilhamento intersubjetivo com o paciente, em busca de compreensão mais do que conhecimento.

Compreensão é outro tema de importância para a psicanálise contemporânea, pois diz respeito a uma outra mudança paradigmática na teoria e clínica. Ao incluir O Outro, que está diante do psicanalista trazendo sua dor, como parceiro na busca de compreensão de seus males e de procura de soluções, o compreender fica além do conhecer, pois para isso são essenciais empatia (poder se colocar no lugar do Outro, um dos passos de evolução espiritual do budismo), humildade e generosidade.

Psicanalistas como Heinz Kohut e Donald Winnicott, desde os anos 1940 em diante, trouxeram importantes contribuições à questão de uma visão em que a presença do Outro é parte essencial do destino de todos nós (seguindo trilha por onde andou Martin Buber) e a vida só pode se entendida em contexto de intersubjetividade.

Ação e desencanto

Ora, usando o sentido ético do Outro, ou o Rosto de Emanuel Levinas, filósofo de extraordinária importância, estudado por pessoas da estatura de Zigmund Bauman para uma melhor compreensão da pós-modernidade e suas diversas desconstruções, fica a perplexidade diante do sentimento de impotência e paralisia trazidos pelas palavras e a postura de Bezerra.

Afinal, lama é pó com água adicionada. Assim, a metáfora (ou metonímia?) usada por ele mostra que o pó, mais do que um lugar ao qual certamente voltaremos (ou somos, ‘Just dust in the wind’, como na música de Sarah Brighton), com a água (da tristeza, por exemplo) vira lama. Do abstrato para o concreto – um dos sentidos da metonímia – é algo que prende e paralisa, na qual se pode afundar. Areia movediça.

Que psicanalista capaz de trazer dentro de si mesmo a tradição humanista representada principalmente pela clínica psicanalítica poderia ir buscar ‘novas maneiras de ser solidário e de compreender o outro’, se esses temas são absolutamente centrais em nossa compreensão de mundo e nossa prática profissional? Um que estivesse profundamente desencantado (por razões que desconheço, mas posso imaginar) com a psicanálise como ele talvez a veja e pratique.

O conjunto da compreensão

Existem muitas psicanálises e psicanalistas. Alguns, longe de se sentirem impotentes ou desesperançados, buscam no diálogo com outras disciplinas, cosmogonias e visões do desenvolvimento do sujeito humano uma visão mais abrangente e uma epistemologia mais humilde. Algo como disse a filósofa e psicanalista americana Donna Orange, ao propor a atitude de ‘realismo em perspectiva’ em lugar da oposição paralisante entre subjetivismo versus realismo.

A busca da ‘verdade’, seguindo estas idéias, necessariamente inclui o Outro e sua visão. É feita em diferentes perspectivas, que, em vez de se excluírem, podem se integrar. Essa noção é semelhante à do filósofo Richard Rorty, quando nos receita ‘pegar leve na teoria e duvidar de nossos pontos de vista’ (Irony, Contingency and Solidarity) e ao proposto por Hans Georg Gadamer, um dos pilares filosóficos da Escola Americana da Intersubjetividade, muito pouco estudada no Brasil.

Tais visões formam o conjunto da compreensão e ação clínica de algumas escolas contemporâneas de psicanálise, e têm muito a contribuir para o debate sobre como viver bem consigo mesmo e incluir o Outro. Tenho muito que conversar com um lama, mas não sinto que precise me tornar um deles, ou pensar exatamente como ele, para sair da lama que teima em nos submergir.

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Psicanalista, membro da Sociedade Internacional de Psicanálise, mestre em Psicologia Clínica pela USP e autor do livro O dia em que Che Guevara e Winnicott se encontraram