Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Antevendo o passado em que estamos vivendo

(Foto: Анастасия por Pixabay)

Em março de 2022 reli o “Turning Back the Clock”, de Umberto Eco (Vintage Books, 2008). O livro é uma coleção de artigos e ensaios em que ele analisa o que chamou, no subtítulo, de “hot wars and media populism“.

Um desses artigos, de julho de 2003, publicado no L’Espresso, prendeu minha atenção. Neste, Eco comenta uma tentativa de Berlusconi, de “retirar a legitimidade do sistema judiciário italiano”. Berlusconi era então primeiro-ministro, pela segunda vez (2001-06). Em tom de desafio, ele disse que “já que foi eleito pelo povo” não aceitaria “ser julgado por alguém que alcançou aquele posto no judiciário graças apenas à sua qualificação profissional”.

Ora – prossegue Eco –, “se levarmos a sério esse raciocínio, eu não posso concordar em ter uma operação de apendicite feita por um cirurgião, ou mandar meus filhos para a escola – e poderia até mesmo resistir a uma ordem de prisão por um policial; porque essas pessoas são autorizadas a executar suas funções devido às suas qualificações profissionais e não por eleição popular”.

Quase duas décadas depois, em janeiro de 2022, li nos jornais brasileiros que o então presidente da República “desobedeceu a uma determinação do presidente do Supremo Tribunal Eleitoral e não compareceu à sede da Polícia Federal para prestar depoimento no inquérito que apurava um vazamento de investigação sobre ataque de hacker a urnas eletrônicas”. Isso apesar da sua “atuação direta, voluntária e consciente” na quebra daquele sigilo, conforme termos da investigação. Ele se colocava acima da lei porque o povo (e Deus, segundo ele) foi quem o colocou no comando.​

Chamou-me a atenção, neste ponto, o conceito de “povo”, ou de “eleição popular”. Berlusconi, falecido em 2023, era dono da maior rede de empresas de comunicação da massa na Itália. E nos seus dias de primeiro-ministro a internet apenas engatinhava. Hoje, plataformas de redes sociais atingem mais pessoas – e mais diretamente, através do celular – do que as telas gigantescas das TVs. 

O povo e o voto

Para Eco, “como uma entidade única, natural, congregando as mesmas vontades, sentimentos ou valores morais, o povo não existe”. Segundo ele, o que existe são grupos de cidadãos, com suas crenças, princípios e mesmo ideias diferentes. Assim torna-se mais correto dizer que um presidente (ou qualquer outro representante) foi eleito pela maioria dos votos dos “cidadãos”, do que dizer simplesmente que ele foi eleito “pelo povo”.

Dentro desse enfoque, se “povo” não existe, os populistas (hoje, como de praxe) sempre tentam (e geralmente conseguem…) criar – segundo Eco – “uma imagem virtual de vontade popular”.

A palavra virtual, embora usada naquele texto de 2003, ganha dimensão nova nos dias de hoje. A televisão torna-se obsoleta diante das redes sociais. Afora ideologia, envolvimento e compromissos comerciais, as emissoras de televisão, em países democráticos, são sujeitas a certas formas de controle, normas legais a serem observadas. Já uma plataforma digital se torna uma ferramenta poderosa – quase não controlada, de custo baratíssimo, quase nulo – para a implementação e manutenção do populismo.

Outro fator, as técnicas de venda, me chamam a atenção. Uma delas, muito usada, é “ser vítima de perseguição”. Funcionou, naquele ano, como um escudo para o então presidente do Brasil, razão pela qual ele decidiu não atender ao chamado de um juiz federal. 

Trago aqui um outro ponto que não estava no contexto da Itália, pelos idos de 2003: o uso da fé, o uso das religiões – quanto mais dogmática, melhor – para manter no cabresto esse tal “povo virtual” citado por Umberto Eco. Esse povo, alimentado pelo que vem das redes sociais, obedece ao que vem dos seus dirigentes, de forma cega, pré-medieval até, ignorando erros desses mesmos dirigentes – sejam eles falhas acidentais ou crimes premeditados.

Eco acerta de novo lá no título do livro: o populismo, avançando hoje a passos largos, é uma força gigantesca que vem contribuindo para atrasar o relógio da história. 

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Marcus Cremonese é jornalista pela FACHA, Rio de Janeiro. Reside em Rylstone, NSW, Austrália.