As fortes chuvas que assolaram o Rio Grande do Sul em 2024 atingiram 474 dos 478 municípios do estado, deixando mais de 380 mil pessoas desalojadas e resultando em 182 óbitos, conforme dados atualizados da defesa civil. Embora o estado como um todo tenha sido afetado, a disparidade socioeconômica faz com que alguns sofram mais que outros. Ao acompanhar os desdobramentos da tragédia, os bairros que mais foram afetados, quem são as pessoas desabrigadas e quais as ocupações mais sofrem com a falta de preparo e responsabilidade do estado? Isso nos remete ao conceito de “justiça climática” e/ou “racismo ambiental”, definições pouco abordadas nos veículos de comunicação tradicionais.
O termo “racismo ambiental” foi criado na década de 1980 pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., em meio a protestos contra depósitos de resíduos tóxicos no condado de Warren, no estado da Carolina do Norte (EUA), onde a maioria da população era negra. No contexto atual, a expressão é utilizada para denunciar que os impactos das mudanças climáticas recaem de forma injusta sobre a população historicamente marginalizada. Ou seja, pessoas racializadas e empobrecidas sentirão mais as consequências da poluição e degradação ambiental e agora do aquecimento global.
Mais de 8 milhões de brasileiros estão expostos a esta nova face do racismo ambiental, vivendo em áreas de risco de deslizamento de terra, inundações e enxurradas. No Rio Grande do Sul, foi constatado que quase 85 mil gaúchos residem em zonas de perigo. O relatório do Observatório das Metrópoles, revela que as regiões mais afetadas são habitadas por indivíduos de baixa renda, predominando pessoas pretas ou pardas. É o caso de bairros como Humaitá, Sarandi e Rubem Berta, em Porto Alegre, e de Mathias Velho, em Canoas, entre os mais afetados pelas recentes cheias. A análise dos dados, combinada com as queixas dos moradores sobre a demora na ação do governo e a má comunicação, torna ainda mais urgente a necessidade do debate sobre o racismo ambiental.
Ao pesquisar como o racismo ambiental estava sendo explorado na GZH, jornal de maior relevância no RS, a resposta apesar de entristecer não nos surpreende: o termo não foi título ou pauta de reportagem sequer uma vez no último ano.
O jornalismo tem o compromisso de informar sobre questões de interesse público e mobilizar politicamente os cidadãos. Em relação às questões ambientais, o jornalismo deve abordar a complexidade e a interseccionalidade envolvidas na emergência climática para engajar a sociedade sobre a urgência do tema. No entanto, o jornalismo tradicional, ao tratar de questões ambientais, carece desse aprofundamento e continua utilizando os antigos enquadramentos que simplificam os problemas decorrentes da crise climática, vilanizando a natureza pelas tragédias ambientais, isentando políticos da responsabilidade e focando apenas no imediato.
Por mais que a tragédia ocorrida no estado gaúcho tenha colocado a pauta ambiental em destaque nos jornais mais importantes do estado e do país, o assunto ainda não foi explorado no quesito das desigualdades sociais. Após três meses dos fenômenos extremos vivenciados em várias regiões do Estado e na capital Porto Alegre, a reconstrução com justiça ambiental precisaria entrar na pauta. Mesmo que a imprensa atue mais forte nos momentos de crise, para quem foi atingido e perdeu tudo, a crise está longe de acabar.
Decidimos olhar para o jornalismo independente a fim de compreender como as vulnerabilidades sociais são discutidas dentro da pauta ambiental pela mídia independente. Destacamos 5 reportagens que contextualizam os fatos e abordam as questões das injustiças sociais. As reportagens são dos veículos #Colabora, Agência Pública, Alma Preta, ((o))Eco e Matinal Jornalismo publicadas entre abril e julho deste ano. Foram localizadas pelo buscador google com os termos “justiça climática” e “racismo ambiental”.
Cada veículo aborda o tema de maneira diferente. A reportagem publicada pelo #Colabora em 4 de abril discute as intensas ondas de calor no Rio de Janeiro e o impacto do aumento da temperatura na vida das pessoas mais pobres, que não têm recursos financeiros para suportar os dias quentes. A matéria da Agência Pública, de 4 de junho, relata o medo dos indígenas de perderem suas terras durante as chuvas que assolaram o estado. A falta de demarcação das terras fez com que muitos relutassem em deixar suas casas à medida que a água avançava. A luta por demarcação é antiga, mas eventos como esse evidenciam ainda mais a necessidade de abordar essa questão.
A reportagem da Alma Preta, publicada em 28 de junho, explora como o racismo ambiental prejudica o desenvolvimento de crianças negras. A matéria inclui uma pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e o relato de uma mãe e seu filho, revelando como a falta de saneamento básico afeta negativamente o desenvolvimento de crianças negras e periféricas na primeira infância.
Em 2 de julho, o jornal ((o))Eco publicou uma reportagem sobre os efeitos dos eventos extremos e do aumento das temperaturas na saúde de trabalhadores que passam o dia ao ar livre, frequentemente em trabalhos informais, na América Latina. A matéria apresenta dados de diversas pesquisas para enfatizar a necessidade de um debate sobre o tema e ações de adaptação. A reportagem do Matinal Jornalismo, de 17 de julho, complementa a anterior ao tratar dos impactos e perdas sofridos pelos agricultores devido às secas e enchentes. A matéria traz relatos de pessoas que perderam tudo (ou quase tudo) devido às chuvas que começaram na última semana de abril no Rio Grande do Sul, contextualizando como esses eventos extremos afetam sua produção e, consequentemente, suas vidas.
As mídias independentes, na contramão do jornalismo corporativo, têm se engajado socialmente visando o engajamento socioambiental. A análise das reportagens revela o compromisso dessas mídias em destacar as vulnerabilidades sociais dentro da pauta ambiental e climática. Enquanto o jornalismo corporativo se limita a simplificações, factualidades e críticas superficiais, saudamos o trabalho dos jornais independentes por sua abordagem abrangente, que contribuem significativamente para a conscientização e o debate sobre racismo ambiental.
Reportagem publicada originalmente em Observatório de Jornalismo Ambiental.
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Thayssa Krugere é graduanda em Jornalismo na UFSM, voluntária de Iniciação Científica no Grupo Mão na Mídia (CNPq/UFSM).
Cláudia Herte de Moraes é jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). Líder do Grupo Mão na Mídia (CNPq/UFSM).