Falando na Folha de domingo, 21, sobre documentos do tempo da ditadura, exumados pelo jornal, que o consideravam “de alta periculosidade”, o ministro da Comunicação de Governo, Franklin Martins, justificou a sua participação na resistência armada ao regime. “Não sei”, diz em dado momento, “por que eu teria uma relação de ‘eu só luto até certo ponto contra a ditadura’.”
Não se sabe também, seria o caso de dizer, por que só foi até certo ponto a matéria de 1.100 palavras do Estado desse mesmo domingo sobre a relação do ministro com o presidente, que transformou o jornalista ‘em um dos principais conselheiros de Lula”.
A reportagem atesta a “mudança radical” no relacionamento entre o governo e a mídia desde que Franklin foi para o Planalto, em 29 de março de 2007, e invoca o testemunho do próprio presidente:
”O Franklin trouxe para o governo a experiência de quem trabalhou nos principais meios de comunicação do País. Claro que ajudou a melhorar as relações entre governo e imprensa. Nós evoluímos, mas acho que a imprensa também evoluiu.”
A matéria cita também, no mesmo sentido, o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho. “Desde que ele chegou, mudou a comunicação externa e a interna”, comenta.
Essa é a primeira, embora não a mais importante ida “até certo ponto” da matéria. Tratar das relações do governo com a imprensa sem ouvir um único editor de jornal é deixar o serviço pela metade, principalmente dado o retrospecto de caneladas de parte a parte entre o presidente e a mídia que a sua gente vivia chamando de “golpista”.
Além disso, a qualidade desse relacionamento não se mede exclusivamente pelo modo como o governo, a começar do ministro da Comunicação, trata os repórteres credenciados no Planalto, nem apenas pela frequência com que ele os recebe e a outros jornalistas em seu gabinete para conversas reservadas, nem mesmo só pelo número de entrevistas coletivas do presidente – descontadas as da modalidade “quebra-queixo”, aparentemente a preferida de Franklin. Na descrição da reportagem, “é a entrevista arrancada em um desorganizado ataque dos repórteres ao entrevistado, com empurra-empurra, pisões e algumas rasteiras”. O que o calejado repórter Clovis Rossi batizou há muitos anos de “cenas de jornalismo explícito”.
O essencial, para o interesse público, é saber se o poder e a mídia consideram em geral legítimos os procedimentos de cada qual diante do outro. O reconhecimento dessa legitimidade equivale a alcançar o difícil equilíbrio entre duas situações opostas, igualmente nocivas: a complacência do jornalismo com os governantes, e a suposição destes de que a imprensa, por definição, só quer ver a sua caveira.
Se a matéria sobre o desempenho de Franklin Martins tivesse completado o percurso inteiro do assunto, em vez de ir apenas até certo ponto, o leitor teria mais elementos para julgar se é nesse equilíbrio ótimo de paz armada que o presidente Lula está pensando quando diz que “nós evoluímos, mas a imprensa também evoluiu” – e o que acha disso a imprensa.
Antes de assumir, numa extensa entrevista ao repórter Kennedy Alencar, da Folha, Martins disse que “o governo tem uma função na relação com a imprensa: garantir a liberdade de imprensa, o nome que se dá ao direito de a sociedade ser informada”. Deve ser por isso que ele hoje compara a comunicação do governo com a sociedade a hábitos normais do cotidiano, “como escovar os dentes, amarrar os sapatos, tomar banho”, nas suas palavras ao Estado.
A diferença é que a rotina da relação governo-imprensa embute uma tensão permanente – a paz armada que se mencionou acima. O governo, todo governo, quer controlar a comunicação com a sociedade. A imprensa quer acesso livre às entranhas do poder e autonomia para comunicar, da forma como julgar melhor, o que elas contêm.
Agora que conhece os dois lados do balcão, o jornalista Franklin Martins decerto teria o que dizer sobre o estado dessa tensão no dia-a-dia do Planalto. Mas não lhe perguntaram.
A matéria – intitulada “Franklin, o poderoso conselheiro de Lula” – tampouco se preocupou em apurar o alcance desse aconselhamento.
Desde que a imprensa se tornou ela mesma parte das notícias que transmite (a videopolítica de que fala o cientista político italiano Giovanni Sartori é exemplo disso), ministros de Comunicação passaram a fazer mais do que definir a estratégia de divulgação das políticas, dos atos e dos planos dos chefes de governo a que servem, orientando a sua conduta em cada caso. Eles são chamados a participar da própria elaboração dessas políticas para maximizar o seu potencial de comunicação e promover a popularidade do dirigente.
A rigor, nenhuma decisão de governo poderá ser alheia a esses ministros-comunicadores promovidos na era da informação a ministros de tudo-um-pouco e a interlocutores privilegiados do titular do Executivo, tão próximos dele como os seus chefes-de-gabinete.
Diretor de Comunicações e Estratégia do governo britânico de 1997 a 2003, o jornalista Alastair Campbell foi praticamente o co-primeiro-ministro de Tony Blair. Essa é a escala do ofício hoje em dia.
Se “a influência de Franklin pode ser sentida até em assuntos triviais”, como diz o Estado – exemplificando com a sua objeção (aceita) a que Lula e seus ministros fossem ao Bezerrão ver Brasil x Portugal – em que assuntos não triviais ela também poderia ser sentida?
Por fim, tivesse a reportagem ultrapassado o certo ponto em que se deteve, tocaria numa questão fascinante para qualquer leitor interessado em política e governo: o que é ser ministro da Comunicação de um presidente que é o rei da comunicação em seu país?
Aos leitores
O blogueiro ficará fora do ar até a primeira semana de janeiro. Boas festas para todos.