A língua francesa permite sintetizar esse tipo de passamento apoteótico com a frase “reussir sa mort” bem mais forte e expressivo que a tradução literal “ter sucesso na morte”, que soa chocho, pois morte e ter sucesso são palavras que se opõem. Mas não se poderia utilizar “consagração na morte” porque ficaria a impressão de ter sido gloriosa a morte, dando a ideia de um ato heroico no momento de morrer.
Nada disso. Ambos tiveram seu sucesso, o seu reconhecimento durante a vida, mas ao deixarem de viver a mídia lhes prestou homenagens com os meios de que dispõe: manchetes, textos, reportagens, depoimentos, lembranças, vídeos, fotos. Os falecidos, tanto um como o outro, não puderam curtir essa apoteose póstuma como também não tiveram influência na sua programação.
A repercussão na mídia da morte de pessoas populares, ilustres, amadas, famosas, deriva de um trabalho paralelo de programação ignorado pelo público: todos os órgãos de imprensa têm um dossiê, uma biografia atualizada, fotos, tudo preparado para publicar e divulgar no dia da morte das personalidades e artistas mais conhecidos.
Talvez hoje, com as novas tecnologias, arquivos e atualização de dados automáticos, não exista mais a figura do repórter mortuário nos grandes jornais, figura importante por garantir o prestígio do órgão junto às famílias enlutadas. No jornal Estadão, como é conhecido o tradicional matutino criado pelo velho e respeitado Mesquita, o dedicado colega responsável pelos obituários, na época em que ali trabalhei, ainda na rua Major Quedinho, acabou integrando no seu nome a sua função. Era o célebre Toninho Boa Morte, encarregado do noticiário fúnebre.
Sua dedicação à sua função vale um parágrafo. Sua dedicação à função garantiu sua popularidade nas redações paulistanas, tanto que ao chegar sua vez de morrer, aos 77 anos em março de 2011, Antonio Carvalho Mendes mereceu destaque no Estadão e na Folha de S. Paulo. Foram mais de 800 mil mortes registradas com zelo durante cinquenta anos de serviço.
No caso de Sílvio Santos, chamou a atenção a maneira com que toda imprensa deu destaque à sua morte tornando-a um luto nacional, por personificar o homem comum e ser uma expressão da cultura popular brasileira. O luto francês e de certa forma europeu e mesmo internacional foi mais sofisticado, Alain Delon sintetizava o gosto refinado, artístico da cultura cinematográfica francesa personificado no que se convencionou considerar seu melhor ator, elevado à condição de star.
A televisão cria líderes populares, dotados é claro de poder de comunicação e de carisma, e Sílvio Santos conseguiu se tornar parte da família da maioria dos brasileiros, com sua presença na tela dos televisores. Politicamente era de direita, mas sabia conviver com Lula e Dilma, como soubera com os ditadores militares.
Isso tem um nome, mas não importa, até petistas ficaram tristes no dia de sua morte e compartilharam isso nos seus WhatsApps. A revista Veja fala dessa política do beija-mão do dono do SBT, que incluiu também o presidente Bolsonaro.
E pouca gente se lembrou de criticar o Baú da Felicidade que, no seu canal YouTube, Leonardo Stoppa chama de Baú da Infelicidade. Celso Lungaretti lembra o vendedor de bugigangas na Praça da República, fala de sua mãe, embrulhada na ilusão do Baú da Felicidade e, no seu blog Náufrago da Utopia, pergunta: “mas por que fez tanto sucesso, apesar de ser o pior tipo do sanguessuga, aquele que chupa o sangue dos coitados? Porque quem na conversa vende algodão por veludo sempre se dá bem no Brasil, onde tem bobo pra tudo”. Paulo Ghiraldelli, no seu canal, lembra também de seu pai, enganado pelo camelô Silvio Santos.
Alain Delon era o cinema francês, a expressão visual nas telas do saber artístico dos grandes realizadores do cinema com a beleza, malícia, atração dos excessos sexuais sugeridos mais a brutalidade cativante dos gângsters franceses. Delon era o homem francês e o que as mulheres pensavam e desejavam desse homem refletido no seu olhar que podia ser cínico e cruel.
De origens modestas, tanto Sílvio quanto Alain conseguiram surpreender com sua força e expressão natural. Sílvio, um vendedor de bugigangas como camelô nas praças paulistanas, encontrou seu público maior na televisão popular; Alain, mau aluno expulso de diversas escolas, era manhoso, esperto, sabia enganar. Seria um péssimo açougueiro, profissão a que seu tio lhe destinava. Viver o que não era e o que era, como excelente ator, foi seu tremendo sucesso.
Mas possuía também seu lado secreto mau e misterioso, que fortalecia sua imagem. Durante anos toda imprensa francesa seguiu seus passos, tentando decifrá-lo no famoso escândalo do seu amigo iugoslavo Markovic, encontrado morto num depósito de lixo. Uma história envolvendo até a esposa do primeiro-ministro e depois presidente francês Pompidou.
Também vale ler e ver –
O que ninguém disse sobre Sílvio Santos, por Celso Lungaretti
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2024/08/o-que-ninguem-disse-sobre-o-silvio.html
O que ler para conhecer Silvio Santos, do prof. Paulo Ghiraldelli
https://ghiraldelli.org/2024/08/19/o-que-ler-para-conhecer-silvio-santos/
Youtube – Hervé Gattegno: la verité sur Delon, les orgies et le scandale Markovic
https://www.youtube.com/watch?v=djiUFfE89Ew
O obituário do obituarista Toninho Boa Morte
https://vejasp.abril.com.br/cidades/o-obituario-do-obtituarista-toninho-boa-morte
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.