Com Paulo Francis não havia meios tons. Ou o objeto da sua análise era bom, ou uma definitiva porcaria. E esse alvo poderia ser um político da nossa República – que para ele era de bananas –, uma obra de arte, uma cidade ou o que quer que fosse. Nada escapava da sua metralhadora giratória, no melhor estilo de outros grandes polemistas do jornalismo mundial. Como H. L. Mencken, por exemplo, jornalista que vergastou os corruptos e medíocres da vida americana nos anos 20.
Nos anos 90, atingiu o topo de sua popularidade escrevendo a coluna Diário da Corte, inicialmente na Folha, e depois no Estadão. Acabou se transformando num personagem de si mesmo, imitado por humoristas e provocando a ira de personalidades que por ele eram fustigadas na coluna, especialmente nomes do PT, na época um salvacionista partido de oposição.
Com seu estilo único, Paulo Francis acabou influenciando toda uma geração de jornalistas. Um deles, Daniel Piza, acabou se tornando amigo de Francis. Aos 20 anos, Piza escreveu uma carta ao ídolo, expondo suas angústias e incertezas. Conquistou a amizade dele, que sugeriu que Piza se tornasse jornalista.
Passados sete anos de sua morte, Paulo Francis é alvo de perfil biográfico escrito pelo amigo. Francis – Brasil na cabeça, da série Perfis do Rio (Relume Dumará), é um livro equânime. Expõe defeitos e virtudes de Francis, sem endeusá-lo. O resultado é o retrato de um polemista incansável, múltiplo de diversas habilidades (jornalista, crítico de cinema e teatro, escritor), cuja vida, de sete em sete anos, sofreu guinadas radicais, sendo a mais importante delas a ocasionada pelo golpe de 64.
Na entrevista que se segue, concedida por e-mail, Daniel Piza, editor de Cultura do Estadão, fala do livro e afirma: Francis não deixou herdeiros.
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Como foi seu primeiro contato com Paulo Francis?
Daniel Piza – Escrevi, como leitor, aos 20 anos, uma carta a ele, que ele até comentou na coluna. Um ano depois, escrevi novamente, agora decidido a me tornar jornalista. Ele me ajudou escrevendo carta ao então editor do Caderno2, José Onofre. No fim desse ano (1991) foi que o conheci pessoalmente, num lançamento de livro em São Paulo. Desde os 14 anos eu lia tudo que ele escrevia nos jornais e seus livros.
Por que Paulo Francis?
D. P. – Passados sete anos de sua morte, ninguém havia parado para tratar de uma história tão interessante quanto a de uma personalidade complexa que marcou o jornalismo e a cultura do Brasil por tanto tempo. Eu, que já tinha organizado um livro em verbetes de sua coluna Diário da Corte, fui convidado a escrever sobre ele para a coleção Perfis do Rio e topei na hora. Queria ‘ler’ aquela figura da história recente e aproximá-la dos leitores antigos ou novos, simpáticos ou antipáticos a ele.
Esse perfil é também uma forma de homenageá-lo?
D. P. – Claro, pelos motivos acima. E também pela independência com que foi escrito. Tenho certeza de que o Francis gostaria do livro e concordaria com os defeitos que aponto.
Como ele observaria o jornalismo embbeded praticado hoje nos Estados Unidos, com reflexo na própria imprensa brasileira?
D. P. – Ele odiava toda forma de comprometimento da opinião, não importa de que lado ideológico ela estivesse.
No artigo ‘Paulo Francis: uma tragédia brasileira’, o jornalista Bernardo Kucinski afirma que Francis pertencia à categoria de gênios que não deram certo. Você compartilha dessa opinião?
D. P. – Não. Francis foi um grande talento jornalístico e, como tal, sua carreira é uma prova de sucesso. Ele apenas ficou frustrado por não ter se tornado o grande romancista que sonhara ser. Mas nem era gênio nem deu errado.
Kucinski ressalta ainda que a maldição de Paulo Francis foi ter nascido no Brasil. Nos Estados Unidos ou Grã-Bretanha, o seu gênio teria sido relativizado no embate com outras mentes de maior calibre. Como você analisa essa crítica?
D. P. – É verdadeira, mas nas duas mãos: se ele escrevesse em inglês, teria tido mais respeito e apoio do que teve numa cultura provinciana como a brasileira. Quem sabe não tivesse até mesmo ‘relativizado’ seus excessos.
Quem seria o herdeiro (ou herdeiros) de Francis?
D. P. – Não existe(m). Existe gente influenciada por ele, nos mais variados formatos. Não há nem deve haver um novo Paulo Francis.
Nos últimos anos de vida, Paulo Francis costumava dizer que se sentia tecnicamente morto. Ele estaria dramatizando?
D. P. – Era uma maneira hiperbólica de dizer algo real, bem ao estilo dele. Francis não via nada de novo na cultura e não se adaptava a muitos dos comportamentos atuais. Vivia sonhando em ir para Paris e sair do olho do furacão jornalístico.
Você observou que, de sete em sete anos, a vida de Paulo Francis sofria guinadas transformadoras. Ele morreu em 1997, portanto, há sete anos. Como esse último período poderia ter atuado sobre a visão de mundo dele?
D. P. – Tento no livro imaginar o que ele pensaria de fatos e tendências de hoje. No campo pessoal, talvez ele estivesse realmente mais afastado, dedicado a escrever mais livros e menos artigos.
Como jornalista, quais eram as principais virtudes e os principais defeitos de Paulo Francis?
D. P. – Virtudes: coragem, clareza, cultura. Defeito: um destempero que o fazia exagerar e ser até leviano com algumas pessoas, além de não lhe dar paciência para escrever trabalhos mais metódicos, mais pesquisados. Descartava muito rápido as coisas que julgava menores.
Graças a influências como Bernard Shaw, Paulo Francis considerava o texto uma performance, capaz de deixar marcas no leitor. Não estaria faltando essa preocupação, mais personalidade, no jornalismo produzido atualmente no Brasil?
D. P. – Com certeza. O texto no jornalismo brasileiro atual é anódino e raso. Precisamos recuperar um teor autoral que não se confunda com personalismos e exageros, que tenham cor sem precisar de tons berrantes.
Como ele veria hoje a chegada do PT ao poder?
D. P. – Falaria mal dele toda semana. Acharia a política econômica uma continuação da anterior e riria muito das tentativas de censura e dos programas sociais fracassados.
O que as novas gerações de jornalistas poderiam aprender com o legado de Paulo Francis?
D. P. – A dizer o que pensam, fundamentando em leituras sérias. E a gostar do que fazem, contagiando o leitor com sua aposta no jornalismo.
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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)