Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Corporativismo policial e apuração jornalística tímida retardaram prisões no Rio

Na carreira do navio, ainda “a quente”, é possível comentar alguns aspectos das prisões de policiais feitas ontem no Rio de Janeiro.


A Polícia há muito tinha informações sobre as atividades ilegais de muitos de seus integrantes. Até aqui, o que deteve a investigação e a punição foi o corporativismo. Com prejuízos incalculáveis para a sociedade, a começar do número de mortos no Rio de Janeiro.


Os repórteres não podem apurar uma crise desse tipo apenas de dentro das redações, como tem acontecido em medida excessiva nos últimos anos. É mais barato para o jornal, sai muito caro para a sociedade. A lentidão com que transcorreu a apuração policial correu em paralelo à lentidão da apuração jornalística.


A operação atual só foi possível porque existe uma guerra de vida e morte entre dois homens acusados de serem chefões herdeiros do falecido bicheiro Castor de Andrade. São Fernando Iggnácio (genro) e Rogério Andrade (sobrinho). Informa a Folha de S. Paulo: “Desde a morte de Castor e com o empobrecimento do jogo do bicho, eles disputam os pontos de caça-níqueis”. O coronel preso, Celso Nogueira, que comandava o 14º Batalhão da PM (Bangu; 40 policiais militares lotados nesse quartel foram presos) e o ex-chefe da Polícia Civil “são acusados de ligação com a máfia dos caça-níqueis” (Folha). Segundo O Dia, a investigação “começou a partir do assassinato do agente federal Aluizio Pereira dos Santos, 47 anos, em maio, em Realengo. No decorrer da apuração sobre o crime, surgiram indícios de que homens da Polícia Civil teriam elo com os bicheiros”. Ou seja: em maio foi morto um agente da PF e começou a investigação agora transformada em operação. Nada disso impediu que um policial acusado de envolvimento em alto grau com o crime, Álvaro Lins, fizesse campanha e fosse eleito com grande votação no Estado do Rio. Será que a imprensa fez tudo o que estava a seu alcance para informar sobre essa realidade?


Outro fator mencionado: ação de refugiados angolanos a serviço de traficantes. Teria chamado a atenção de autoridades federais. Folha: “Pela primeira vez, autoridades policiais anunciaram oficialmente a existência na região metropolitana do Rio de Janeiro de ex-guerrilheiros angolanos contratados por facções do crime organizado para combater grupos inimigos. A ação dos angolanos era até ontem creditada a uma espécie de lenda urbana carioca”. Todas as informações dadas a esse respeito anteriormente foram contestadas por autoridades diplomáticas angolanas. A imprensa parece ter aceitado a contestação diplomática.


Armas da polícia para o tráfico estão em livro lançado em maio


O esquema de venda de armas por policiais para traficantes, detectado em gravações de telefonemas passadas à imprensa, é denunciado no livro Elite da Tropa (Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel), lançado em maio deste ano: “No final, a gente vai olhar mais de perto, o dinheiro é um só, a motivação é a mesma e tudo acaba sendo um único embrulho: a polícia vende as armas para os traficantes, vai buscá-las no morro para o espetáculo das exibições políticas na mídia. No dia seguinte, devolve todas elas e ainda cobra uma taxa aos traficantes. Essas armas são usadas contra a própria polícia, mas essa cambada não está nem aí para as conseqüências” (págs. 25/6; o livro retrata a trajetória do Bope, Batalhão de Operações Especiais).


Além do 14º Batalhão, olhar atento ao RPMont, ao 24º e ao 31º batalhões


Provavelmente essa operação será um divisor de águas na investigação do envolvimento polícia fluminense com o crime. Não apenas devido ao número de policiais presos, nem devido ao fato de que o lote inclui um coronel PM comandante de batalhão, mas porque foi ação de uma outra polícia (Polícia Federal). Mas isso depende, é claro, do que acontecerá daqui em diante. Há muitas maneiras de “melar” uma investigação.


O 14º Batalhão da Polícia Militar (Bangu) não é o único que aparece como intensamente comprometido com atividades ilegais na Zona Oeste. Também há investigações a respeito do Regimento de Polícia Montada (RPMont), de Campo Grande, do 24º Batalhão (Japeri) e do 31º Batalhão, do Recreio dos Bandeirantes – além da contravenção e dos caça-níqueis, existe controle de transporte ilegal por vans e kombis, e as milícias, que alguns preferem chamar pelo nome certo, esquadrões da morte ou grupos de extermínio. A situação da Zona Oeste é considerada desafiadora. E o curioso é que não há tráfico de drogas em escala relevante (salvo na Cidade de Deus, que as “milícias” ainda não conseguiram tomar de assalto). Mas há tudo o mais. Sob investigação da Justiça estadual e do Ministério Público.


Presos são pequena fração dos investigados


Se as escutas telefônicas, como informa a Folha de S. Paulo, chegaram a pelo menos 450 policiais militares e só 77 foram detidos, há 373 soltos. Alguns deles podem até mesmo ter participado da detenção de outros. Repórteres de polícia do Rio de Janeiro estranham que nenhum dos quatro investigadores que eram auxiliares do então chefe da Polícia Civil fluminense, Álvaro Lins, tenha sido preso, nem o que supostamente estaria numa delegacia policial em Bonsucesso, Jorge Luiz Fernandes (Jorginho), cercada pela Polícia Federal. Suspeita-se que, apesar do sucesso do bote de ontem, tenha havido vazamento de informações.


Diplomado tem imunidade?


Repórteres estranham que o mandado de busca na residência do ex-chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, diplomado ontem deputado estadual, não tenha sido cumprido. A Justiça não concedeu autorização para a prisão dele, mas deu o mandado de busca. Há informações um tanto desencontradas a respeito: autoridades dizem que a diplomação o deixou imune à busca na residência, mas o presidente do TRE-RJ, Roberto Wider, diz que isso só se aplica depois da posse. De todo modo, segundo o Globo, o superintendente da Polícia Federal no Rio, Delcir Teixeira, informa terem sido constatadas irregularidades na campanha de Álvaro Lins que configuram crime eleitoral. A PF prometeu enviar os dados à Justiça Eleitoral.


Álvaro Lins serviu seis anos nos governos de Anthony e Rosinha Matheus. Se um deles tivesse ficado com mandato (poder), talvez o nome do delegado tivesse permanecido na sombra, como até agora, apesar de antigas denúncias relacionadas com uma lista do jogo do bicho (1993).


Talvez seja instrutivo examinar o mapa da votação de Álvaro Lins. Ele concorreu pelo PMDB. Teve a terceira maior votação (108.652 votos). Há quem antecipe que essa busca não revelará muita coisa, porque a votação de Lins foi boa em muitas áreas da capital (onde ele foi o mais votado, com 68.827 votos). Álvaro Lins era subordinado a Marcelo Itagiba, ex-superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro que assumiu a Secretaria de Segurança quando Anthony Garotinho a deixou, no governo Rosinha. Itagiba foi eleito deputado federal pelo PMDB (sétimo colocado, com 70 mil votos).


Calendário pressiona


O jornal O Dia chama a atenção para o fato de o secretário de Segurança escolhido pelo governador eleito, Sérgio Cabral, José Mariano Beltrame, ter sido coordenador da inteligência da PF no Rio. Precipitar as investigações agora seria uma maneira de fazer uma “limpa” antes da posse. Beltrame foi antecedido na função por Roberto Precioso, que no momento é o secretário de Segurança do Estado do Rio. Outra circunstância ligada ao calendário é a realização do Pan-Americano no Rio em 2007. Se é para melhorar a segurança durante o evento, o tempo é curto. Por sinal, o futuro comandante da PM, escolhido por Cabral, é o coronel Ubiratan Ângelo, que estava à frente dos estudos para o policiamento do PAN.


Vigiar os presos


Mais uma vez fica patente que o patrimônio de autoridades investigadas sob a acusação de associação com o crime não é compatível com seus vencimentos. Mas não é preciso dar tratos à bola para constatar isso. Já foram feitas, e devem ser feitas sistematicamente, reportagens que mostrem os carros nos estacionamentos de quartéis e delegacias. Mais “simples” do que pegar Al Capone pelo Imposto de Renda. Só não vê quem não quer.


A chamada “milícia”, controladora de 92 favelas cariocas, segundo recente série de reportagens do Globo, vai contra-atacar. Também se trata de bandidos que usam ou usaram farda ou carteira de polícia. Há ameaças no ar.


A imprensa precisa criar linhas de apuração especificamente destinadas a verificar até que ponto haverá impunidade neste inédito escândalo. Acompanhar com atenção, por exemplo, a situação dos policiais detidos no que agora se chama de Batalhão Especial Prisional, a antiga Casa de Custódia de Benfica, subúrbio carioca, desativada após um massacre de 30 presos. A impunidade será tanto maior quanto maior for o poder aquisitivo do acusado. Quanto mais dinheiro ele tiver, mais eficazes os advogados que contratará.