O documentário Pro Dia Nascer Feliz, de João Jardim, é um poderoso indutor da discussão sobre a educação no Brasil. Sem retórica, sem esquematismo. Usa depoimentos dados por alunos de escolas públicas em Manari, Pernambuco, Duque de Caxias, Baixada Fluminense, e Itaquaquecetuba, Grande São Paulo, e numa escola particular de classe média no Alto de Pinheiros, na capital paulista. Jardim tem participado de muitos debates desde o lançamento do filme, em março, e constata que as perguntas do público revelam em geral um desconhecimento muito grande da complexidade do problema educacional brasileiro. A mídia alimenta a audiência com material pouco reflexivo. Documentários capazes de aliar sofisticação de análise com simplicidade de expressão ainda são relativamente poucos na televisão, que seria, na opinião de Jardim, o terreno ideal para seu florescimento.
“A sociedade não quer só ouvir que os deputados roubaram, que aconteceu tal coisa. Ela quer entender como funciona o sistema que permitiu que isso acontecesse. A gente tem essa máquina de denúncias, muito positiva até, que virou a imprensa, e não tem essa outra produção”, diz o cineasta.
O filme, exibido em muitas capitais e cidades grandes do país – estréia na semana que vem em Vitória e Goiânia –, foi visto por mais de 50 mil pessoas. O DVD de Pro Dia Nascer Feliz será lançado no final de julho.
Eis as partes principais da entrevista dada ao Observatório da Imprensa, em abril, por João Jardim.
Cobertura factual deixa muita pergunta em aberto
Em que medida o senhor usou o noticiário da imprensa sobre educação como ponto de partida para conceber seu filme?
João Jardim – Muito do material de pesquisa que eu utilizei veio dos jornais. Um pouco da televisão também, mas principalmente dos jornais, essa cobertura que é feita sobre a questão da educação, muitas “denúncias” ligadas ao mau funcionamento da escola. Exatamente aí também está a questão que dá nascimento ao filme. As matérias que eu lia no jornal e via na televisão deixavam muitas perguntas em aberto. E é justamente o que me causou grande curiosidade: entender o que está por trás daqueles números, daquelas denúncias.
Infelizmente não temos no Brasil o hábito de produzir um tipo de jornalismo reflexivo de consumo mais aberto. Você até tem isso na figura do [Arnaldo] Jabor, ou de cronistas assim, mas é sempre uma coisa muito opinativa. O que me interessou foi produzir uma peça de caráter opinativo – porque é uma coisa autoral, tem a minha opinião –, baseada em fatos reais – é um documentário –, com objetivo reflexivo.
Produção que visa à reflexão vai para públicos restritos
É um processo que eu acho muito complicado na imprensa brasileira. Principalmente a imprensa audiovisual se prestaria mais a fazer documentários, para televisão, de forma mais industrial. “Globo Repórteres” que possam fazer uma análise reflexiva e não só uma análise factual. É sempre o fato só, sempre fato, fato. Quando você vai para uma produção reflexiva, você entra em um tipo de produção que não é acessível para o grande público, que é ou o documentário muito hermético ou são os cadernos de idéias dos jornais.
O que é interessante do filme, foi o que eu quis produzir, é que ele é uma peça de estudo, de reflexão. A utilização que ele tem hoje em dia é uma utilização das pessoas olharem para ele, ali tem tudo aquilo que os jornais denunciam visto de uma outra forma, mais humana, que permite uma crítica: “Ah, não! Isso aqui não acontece aqui, isso aqui está exagerado”. “Ah, não! Mas faltou mostrar as experiências positivas”, faltou não sei o quê. Então, exatamente esse tipo de crítica ao produto e de reflexão sobre o produto, e essa longevidade que o produto documentário tem, de certa maneira faltam.
A questão da educação é tão relevante para o país, e ela se resume a isso, aos jornais fazendo denúncias sobre como as coisas funcionam errado, os cronistas escrevendo matérias. Não que o jornal deva ser diferente. O jornal é o que ele é, ele é para todo dia: ele é lido e no outro dia já está enrolando peixe.
É uma coisa que falta ao Brasil como um todo, que se tem nos Estados Unidos, na Europa, a produção de um tipo de material audiovisual que permite discutir o tema. A durabilidade do filme e a relação do meu filme com a mídia é esta: ele pretende ser um produto muito comum nos países desenvolvidos, um tipo de produção audiovisual que não é acessível a um público maior, que permite uma reflexão sobre o tema.
Em debates, perguntas que demonstram desconhecimento
Em março houve um debate no Espaço Unibanco, em São Paulo. Como foi esse debate?
J.J. – Foi ótimo. Houve vários debates assim. Na verdade, acaba não sendo muito debate, acaba sendo um pouco só uma palestra sobre o filme, com algumas perguntas. Mas o que eu percebo é justamente isto: as pessoas têm uma visão muito factual do problema. Elas não têm uma visão mais reflexiva, e então as perguntas são muito básicas: “Ah! O que se faz para solucionar o problema?”.
Isso o senhor não pode responder. Pode dar algumas opiniões…
J.J. – Pois é. Essa é a pior pergunta que existe, porque ela justamente demonstra um total desconhecimento do problema de uma maneira mais abrangente ou de uma maneira um pouco mais reflexiva, por parte do cidadão. Mas acontece que com o tipo de informação que ele recebe, que é sempre aquela informação factual e de denúncia, ele acha que existe essa solução. Porque ele não tem um conhecimento, não existe um debate.
Mas isso é uma coisa da nossa sociedade. Isso é uma coisa do Brasil, não é uma coisa nem da mídia. Somos um pouco assim: um pouco alienados, virados para fora. Não temos o hábito de nos conhecer. Lógico, na literatura até se tem, mas mas na mídia como um todo, televisão principalmente… Temos o Fantástico, que faz umas matérias de comportamento. Temos alguns programas que pretendem dar um aspecto mais comportamental à questão, e que trazem até grande conhecimento. A gente fala muito mal do Fantástico, mas acho que é um dos programas mais educativos que tem na televisão brasileira.
Sim.
Documentário corre riscos que a TV comercial não pode correr
J.J. – Tanto ele quanto o Globo Repórter. É uma pena que não se possa ter aquilo de uma forma menos… É uma empresa muito grande, aquilo ali é a voz daquela empresa. Uma empresa que até é muito bem intencionada em alguns aspectos, mas isso precisaria existir de uma forma independente também.
Esse meu filme por exemplo, tem que ser produzido de uma forma independente, porque ele tem um risco e não cabe às empresas de radiodifusão correrem esse risco. É uma pena não se ter esse espaço para a produção de audiovisual de temas brasileiros polêmicos.
Ninguém consegue patrocínio para filme sobre Câmara dos Deputados
Qual é sua opinião sobre a bandeira da TV pública empunhada por Franklin Martins e outros? Pela sua experiência, expectativa, vivência, ela acena com alguma possibilidade positiva?
J.J. – Poderia ser positiva. O problema é que já se tem essa TV pública no Brasil. Tem que melhorar. Porque já tem a Rede Minas, a TV Educativa, a TV Nacional de Brasília, e uma quantidade de outras emissoras públicas que gastam verbas do governo. Outra televisão não dá, duas tevês. A idéia é muito boa, mas é preciso que seja feita com esses recursos [que já são empregados].
E o financiamento do seu filme, como foi?
J.J. – Patrocínio.
Renúncia fiscal.
J.J. – Exatamente. De leis de incentivo. Que é uma coisa ótima, mas também tem um comprometimento com relação ao conteúdo. Porque ninguém vai conseguir patrocínio para fazer um filme sobre a Câmara dos Deputados. Não consegue! Vai conseguir um patrocínio para fazer um filme sobre as prisões do Brasil. Até você faz lá alguma coisa, mas sempre muito mambembe.
Se bem que fizeram um filme maravilhoso chamado O Prisioneiro da Grade de Ferro (de Paulo Sacramento; mais informações em http://www.prisioneiro.com.br/index.htm). Eu não sei como é que foi financiado.
J.J. – Mas é um projeto muito alternativo. Maravilhoso, mas ele deu a câmera para as pessoas [presidiários do Carandiru] fazerem. Isso já cria um projeto de orçamento baixo. É uma alternativa. O Prisioneiro da Grade de Ferro é um exemplo do que eu estou dizendo.
Como você não tem como financiar esse tipo de coisa, porque tudo depende de patrocínio, você tem que, para fazer um filme sobre esse tema, que é da maior importância, procurar alternativas de baixo orçamento, porque as fontes de patrocínio são pequenas. Você teria “n” temas polêmicos no Brasil para se fazerem documentários que você não pode formatar devido à impossibilidade de conseguir patrocínio. Porque vão ser filmes arriscados, polêmicos, que não sei o quê… que vão falar mal de coisas e pessoas. Vai fazer um documentário sobre corrupção no Brasil. É supercomplicado.
O seu filme teve repercussão na mídia, o que mostra que existe uma sensibilidade. Quando o senhor diz que o público vai ao debate e faz perguntas que revelam um certo despreparo, a mídia, para mim, não sai inocente disso. Porque ela é que devia alimentar o público com as perguntas corretas.
J.J. – Mas a questão é essa. Você tem dois tipos de pessoa: um tipo de pessoa que conhece o assunto e que na verdade não pergunta porque sabe que a problemática é muito confusa, no meio de um público muito grande, de pessoas que, justamente, não têm conhecimento maior. Esse acaba achando que vai ficar uma conversa muito hermética. É isso, um pouco, que é complicado. Para uma grande massa, trabalha-se muito só factualmente. Não se cria conhecimento, criam-se manchetes. Eu acho até que a mídia tenta, mas é que não é da nossa tradição, talvez. É difícil. As pessoas não sabem que aquilo ali é para elas. Acham que aquilo ali é só para os interessados, não é para todo mundo.
Mas isso é um problema do cinema brasileiro. Porque a televisão, por exemplo, não teve esse problema. Se tomarmos como ponto de partida o texto de Walter Benjamin sobre a reprodutibilidade (“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”), ele diz que o cinema é financiado pelos espectadores. Um capitalista põe o dinheiro e depois quem vai pagar o filme é a bilheteria. A televisão brasileira conseguiu fazer isso em uma escala espetacular.
A televisão tem como aliado o produto estrangeiro
J.J. – Esse raciocínio não é válido porque justamente a televisão usou da própria dificuldade do cinema brasileiro. A televisão tem como aliado o produto estrangeiro. Ela se utiliza dele para se capitalizar mais. É um produto estrangeiro que vem para o Brasil pago. É quase como se fosse subsidiado. Já se pagou no país de origem e vem para cá para ser vendido para a televisão ou para o cinema, só para trazer mais lucro para o produtor. É uma competição desleal. A gente não tem o mercado deles, e nem é para ter, porque também a gente quer fazer coisas! Eles foram muito competentes em uma produção cultural que dominou o mundo.
Mas a TV Globo venceu essa batalha. A maior parte do que ela transmite é produção própria.
J.J. – Primeiro ela, durante muito tempo, se utilizou também de exibir produtos estrangeiros a um custo muito baixo. E até hoje isso acontece com as empresas. Mas o que eu acho interessante nesse processo é que a televisão só reforça isso que eu estou querendo dizer. É um lugar em que se tem um tipo de produção que é muito fácil para as pessoas e que não custa nada. É uma coisa muito desleal. Ontem na televisão tinha um comercial do Piratas do Caribe. O filme vai estrear daqui a dois meses [entrevista dada em abril]. Então é um volume de dinheiro que eles têm para investir.
Não que eu não ache que tenha problemas no cinema brasileiro. Com certeza as pessoas fizeram muitos filmes que não interessaram ao povo, mas a concorrência é muito desleal, porque eles produzem uma coisa para um tamanho de mercado. Produzem para um mercado de cinqüenta milhões de pessoas – um filme muito bem-sucedido nos Estados Unidos pode ter cinqüenta milhões de espectadores. Ou ele pode ter dez milhões de espectadores – uma grande produção teria dez milhões de espectadores. Ele gasta um dinheiro para ter aquilo. Depois ele vem aqui no Brasil para ter quinhentos mil espectadores. Estou falando do filme médio. E competindo com a gente, que faz só para isso.
O custo de produção que a gente tem é para atingir esses quinhentos mil. O que o cara investiu é muito mais e tem muito mais chance de dar certo. Por isso essa comparação é muito desleal. Eu ver queria se eles tivessem lá um capitalista americano que tivesse que produzir só para o mercado brasileiro. Quanto ele iria investir? Para fazer um filme nos Estados Unidos e o único local em que ele vai exibir é no Brasil. Quanto ele vai investir no filme?
Muito menos, é óbvio.
J.J. – Vai investir cem mil dólares, que é quanto ele acha que vai recuperar, provavelmente. Ou duzentos mil dólares. Por isso não se pode fazer isso tipo de comparação, porque o cara está fazendo um investimento em um produto para um mercado que é infinitamente maior. E aquele mesmo produto, com aquele investimento, que de é cem milhões de dólares, ou de cinqüenta milhões (o custo médio de produção nos Estados Unidos hoje é de sessenta milhões de dólares), pega e coloca aqui. E a gente faz um produto com um milhão para competir com esse de sessenta milhões. É exatamente isso que acontece. Pode-se comparar com algum tipo de cinema independente. Mas aí os filmes têm o mesmo público que o brasileiro. Se você pegar o filme independente francês mediano e for ver a média de público dele no Brasil, deve estar em torno de quarenta mil, cinqüenta mil, sessenta mil – o que deve ser a média do filme brasileiro.
Nos Estados Unidos existe a PBS e até mesmo a HBO, na televisão a cabo, na França, a Arte; na Inglaterra, a BBC. São televisões que têm um tipo de produção audiovisual documental que discute temas polêmicos de uma maneira mais reflexiva, mais profunda. De forma que, quando a pessoa termina de ver, ela tem um entendimento maior da problemática.
A sociedade demanda isso, não quer só ouvir que os deputados roubaram, que aconteceu tal coisa. Ela quer entender como funciona o sistema que permitiu que isso acontecesse. E o que acontece aqui é justamente que temos essa máquina de denúncias, muito positiva, até, que virou a imprensa, e não temos essa outra produção.
Público acha que caderno especial sobre educação é só para professor ler
Eu até discordo um pouco nessa história do jornal, porque eu acho que com a internet, uma série de fenômenos que estão por aí, ou o jornal caminha para esse lado, ou então… Para ele dizer atrasado o que aconteceu ontem e todo mundo já sabe… Está perdendo leitura.
J.J. – Acontece que essa questão não consegue ser encaminhada de um dia para o outro.
Não. É uma mudança cultural no jornalismo.
J.J. – Acho que eu fiz um filme equilibrado, porque eu demorei três anos refletindo sobre o assunto, sobre como falar daquilo, sobre como tocar naqueles pontos, falando mal e bem de certas coisas, de uma forma justa. E esse tipo de reflexão não se faz de um dia para o outro. Não se faz mesmo.
Parece que os cadernos especiais até fazem, mas não adianta, porque ninguém lê. Se você faz um caderno especial de educação no jornal, o público acha que é para professor.
Acho que é possível formar melhor o repórter e promover uma discussão constante para que, quando ele for apurar aquele fato, consiga inserir no relato jornalístico o resultado dessa discussão.
J.J. – Você não tem nem cem por cento de razão, você tem cento e vinte e um. Essa questão da má formação do jornalista é um problema grave. E existe também a má formação do cineasta, que no Brasil é totalmente empírica.
(Transcrição de Tatiane Klein.)