A tese do financiamento público do jornalismo local acaba de ganhar um novo impulso depois que a assembleia da Califórnia, nos Estados Unidos, aprovou dois projetos prevendo apoio financeiro à produção e distribuição de notícias. A decisão dos legisladores californianos marca uma nova etapa na longa polêmica sobre a sustentabilidade futura do jornalismo, especialmente o praticado em pequenas e médias cidades.
Dois fundos financeiros, no valor total de 250 milhões de dólares, serão criados com recursos do orçamento público estadual, ou seja, dinheiro oriundo de impostos e, portanto, dos contribuintes e da empresa Google que, pela primeira vez, se associa a uma iniciativa governamental para financiar projetos jornalísticos.
Um projeto, o News Transformation Fund (Fundo de Transformação das Notícias), no valor de 125 milhões de dólares, se destina a subsidiar o funcionamento de empresas jornalísticas grandes e pequenas. A Google entra com US$ 55 milhões e o governo californiano com o restante (US$ 70 milhões). O segundo projeto, o National AI Innovation Accelerator (Acelerador Nacional da Inovação em Inteligência Artificial) visa estimular o desenvolvimento de aplicativos de inteligência artificial para uso em atividades jornalísticas. Os valores cobrirão entre dois a três anos de financiamento e podem ser ampliados caso outras empresas de tecnologia venham a integrar o esforço.
O News Transformation Fund será administrado pela Faculdade de Jornalismo da Universidade da California (Berkeley) e será distribuído, ao longo de 5 anos, com base no número de jornalistas por redação beneficiada, 12% das quais devem se dedicar à cobertura de questões locais e hiperlocais. As emissoras de TV não receberão recursos do fundo. Já o National AI Innovation Accelerator, receberá US$ 62,5 milhões da Google e o restante das fundações estaduais de apoio à pesquisa científica na Califórnia.
Prós e contras
Os dois programas de financiamento de atividades jornalísticas na Califórnia foram criticados por organizações sindicais e por defensores dos direitos de consumidores. As principais críticas focaram no fato de que a Google se livrou de processos que exigiam o pagamento de compensações pelo uso de material jornalístico num valor variável entre 10 e 12 bilhões de dólares. A estimativa foi publicada numa pesquisa feita pelo projeto Iniciativa para o Diálogo Político (Initiative for Policy Dialog), da Universidade Columbia em parceria com consultores do grupo Brattle.
Também surgiram muitas críticas ao fato das empresas Meta (dona do Facebook) e Amazon (comércio eletrônico) não terem aderido aos projetos apesar de faturarem bilhões de dólares com informações obtidas gratuitamente de seus usuários. Em compensação, as entidades que reúnem donos de grandes empresas jornalísticas apoiaram fortemente ambos os projetos. Trata-se de uma importante mudança de posição dos grandes grupos da comunicação, que até agora eram radicalmente contra qualquer tipo de participação governamental num negócio privado.
A polêmica sobre financiamento público da imprensa e de projetos jornalísticos ainda vai durar algum tempo, porque tudo indica que não haverá um modelo único para a crise financeira na imprensa convencional provocada pela migração da publicidade para o ambiente digital. Especialistas em mídia digital e jornalismo local, como Jeff Jarvis, e a pesquisadora acadêmica Nikki Usher, ambos norte-americanos, concordam que o maior problema não é recompor um modelo em crise, mas repensar o jornalismo na perspectiva da era digital.
Jeff Jarvis, autor de um livro sobre a Google, admite que os projetos californianos são um passo adiante na solução da crise na produção jornalística que, segundo ele, é causada por um sistema falido de produzir notícias comercialmente. Destaca ainda que é preciso explorar formas mais inclusivas e diversificadas no exercício do jornalismo. Já a professora Nikki Usher, acha que o verdadeiro problema não é recuperar um modelo que deixou de atender às necessidades informativas da população, mas investir na informação local que, no seu entender, é a modalidade capaz de criar uma sólida relação entre o cidadão e os jornalistas.
O caso da Califórnia mostra o crescimento da tendência mundial na direção da transformação do jornalismo numa função pública, diante da incapacidade do modelo comercial de atender à demanda crescente das pessoas por mais informações. O grande desafio não é remediar o irremediável, mas planejar o jornalismo do futuro, processo onde a única fonte possível de financiamento é a parceria entre o setor mais dinâmico da economia contemporânea, o da tecnologia, com o investimento público.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.