Ao contrário das previsões catastróficas das redes sociais da extrema direita, o Brasil não voltou à era analógica nos dias seguintes à retirada do ar do aplicativo X (antigo Twitter). Na sexta-feira (30/08), uma intimação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão do aplicativo no país. De maneira resumida, a intimação aconteceu porque a empresa não tem representante no Brasil e não pagou as multas que lhe foram aplicadas por ter desrespeitado decisões do STF, mantendo no ar perfis de usuários envolvidos com atentados à democracia. Toda essa bronca aconteceu porque o proprietário do X, o bilionário Elon Musk, 53 anos, resolveu não só descumprir as determinações da Justiça do Brasil como também encher de desaforos o ministro Moraes. O ministro não é a primeira autoridade que o empresário ataca. Faz parte de uma longa lista de desaforados, em que aparecem pessoas como o primeiro-ministro da Inglaterra, Keir Starmes, 62 anos. Também há uma lista de personalidades para quem Musk vive rasgando elogios, entre elas o ex-presidente e candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump (republicano), 78 anos, e o ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro (PL), 69 anos. A bronca do empresário com o STF ainda está longe de terminar. E tem merecido atenção diária da imprensa ao redor do mundo – tudo está internet. Lembrei-me do caso para colocar em discussão “um canto escuro” dessa situação que vem passando batido pela imprensa. Vamos a nossa conversa.
Durante as quatro décadas que trabalhei em redação, na maior parte do tempo estive envolvido com reportagens sobre conflitos agrários, ocupação de fronteiras agrícolas e crime organizado nos países vizinhos ao Brasil. Nunca me interessei muito por assuntos fora da minha área. Até por falta de tempo. No caso de Musk, fiquei interessado nele quando li que havia nascido na África do Sul. Por quê? Na década de 90, fui enviado a Angola, na África, para produzir matérias sobre a guerra civil que se arrastava havia mais de duas décadas. Fui enviado porque o Brasil vendia armas, munição, veículos e novelas para um dos lados, o governo que era dirigido pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Em Luanda, capital do país, existia um grande mercado a céu aberto chamado Roque Santeiro, título de uma popular novela da Rede Globo (exibida entre 1985 a 1986), escrita por Dias Gomes (1922-1999) e Aguinaldo Silva, 81 anos. O MPLA travava uma guerra contra a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), uma organização anticomunista. Falar com o pessoal do governo foi tranquilo. Porém, tive dificuldades para entrar no território dominado pela UNITA.
Tive sorte de ser apresentado por um colega americano ao pessoal da Embaixada da Inglaterra. Foram eles que me colocaram dentro de um avião das Nações Unidas (ONU), cheio de jornalistas do mundo inteiro, que estava indo para a província de Huambo, um estado de Angola dominado pela UNITA. No aeroporto de Huambo, os guerrilheiros da UNITA não queriam deixar eu e o fotógrafo descermos do avião por sermos brasileiros. Os colegas pressionaram e conseguimos desembarcar da aeronave, mas vigiados de perto por um guerrilheiro com um fuzil AK-47. A conversa começou a rolar e o ambiente foi ficando tranquilo. Foi ali que, pela primeira vez, ouvi de um dirigente da UNITA a referência ao Batalhão Búfalo. Cheguei a engatilhar uma pergunta sobre o assunto, mas desisti ao levar uma pisada no pé de um colega chinês. Soube depois que o batalhão funcionava na África do Sul, que na época vivia sob o apartheid, o regime de segregação racial que separava os brancos da maioria negra da população. O Batalhão Búfalo tinha como missão incentivar e manter a guerra civil de Angola. Na década de 80, houve um movimento mundial contra o apartheid, que envolveu até os roteiristas de Hollywood. Ficou famoso o filme Máquina Mortífera, uma comédia policial que virou uma bem-sucedida franquia e tinha como personagens principais os policiais Martin Riggs (Mel Gibson, 68 anos) e Roger Murtaugh (Danny Glover, 78 anos). Foram quatro filmes, o segundo sobre o apartheid da África do Sul.
O apartheid acabou em 1991. Em 1994, foi eleito presidente da República Nelson Mandela (1918-2013), advogado, poeta, escritor, líder rebelde, prêmio Nobel da Paz (1993) e preso político durante 27 anos. Um ano depois, em 1995, ele usou a Copa do Mundo de Rúgbi, realizada na África do Sul, para unir os brancos e os negros do país. A história virou o filme Invictus (2009), do diretor Clint Eastwood, estrelado por Morgan Freeman e Matt Damon. Musk nasceu em 1971, em Pretória, a capital administrativa da África do Sul, onde viveu a infância e parte da adolescência. O seu pai, o engenheiro Errol, 78 anos, ficou rico com a exploração de pedras preciosas. A África do Sul não é apenas mais um país entre tantos outros. É uma terra com uma história muito rica em lutas populares. O que o bilionário Musk pensa a respeito do berço onde nasceu? Por que isso interessa ao nosso leitor? Musk é empresário de um novo tempo, onde as comunicações levam segundos para dar a volta ao mundo. Levando mentiras, intrigas e discurso do ódio livremente. Li um artigo interessante sobre o assunto de um pensador americano. Ele adverte que o empresário flerta com forças políticas de extrema direita que acredita que pode manter sob controle. A mesma crença que tiveram os grandes grupos econômicos da Alemanha e da Itália nos anos 30. Eles apostaram que podiam dominar Adolf Hitler, na Alemanha, e Benito Mussolini, na Itália. E deu no que deu. Na Segunda Guerra Mundial, que deixou um salto de 70 milhões de mortos. Em nome do bom jornalismo é necessário ir além do óbvio para saber o que o bilionário pensa sobre a realidade que o cerca. O berço onde nasceu é um bom começo.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.