O leitor que freqüenta com um mínimo de regularidade este cantinho da internet terá constatado que os dois tópicos “Debate busca raízes da violência” [parte 1; parte 2] são quilométricos. Exigem impressão em papel antes da leitura. Em benefícios das colunas vertebrais.
O leitor terá constatado também que o estoque de material deste blog é praticamente invisível. É preciso ter lupa e ser perito em navegação para achar tópicos antigos. Saiu da página, desaparece. Fenômeno, por sinal, muito comum na maior parte dos sites. O recurso, em geral, é usar um mecanismo de busca. Mas para isso a pessoa precisa ter um mínimo de informação sobre o que deseja buscar, é claro. Se não conhece o cardápio, vai pedir o quê?
Tudo somado, penso que é preciso atrair constantemente os leitores para tópicos que ficaram perdidos no tempo-espaço do site.
Aqui vai mais uma “isca”.
Na segunda parte do debate sobre as raízes da violência, o professor Roberto Kant de Lima menciona um conceito relativo à desigualdade formal que existe entre brasileiros, conceito presente, segundo ele, num discurso de Rui Barbosa de 1920 e aceito pela doutrina jurídica do país.
Trata-se de dois trechos.
Primeiro:
‘Essa questão de que a sociedade não é uma sociedade de iguais, republicana, está profundamente enraizada no nosso processo penal e é tida pela cultura jurídica… O negócio do Rui Barbosa: a regra da igualdade é tratar desigualmente os desiguais. O discurso do Rui Barbosa, em 1920, diz isso. Ou seja: há desiguais, e eles devem ser tratados desigualmente. O que é diferente de dizer que você deve tratar igualmente os diferentes’.
Segundo, quase no final:
‘Como é que pode as pessoas acharem que num país onde a desigualdade jurídica é assim escancarada, porque está escrita na lei… Isso é um caso sério, porque a igualdade jurídica é uma conquista do século XVIII para o mercado poder desigualar. Você cria essa invenção de dizer que as pessoas são iguais para o mercado poder dar porrada em todo mundo, mas quando você diz que as pessoas são desiguais juridicamente, elas não têm jeito de ser iguais, porque o direito está dizendo para elas: Você pode fazer o que você quiser, que você vai ser desigual. Como é que essas pessoas que têm direitos desiguais vão ter consciência de deveres iguais, obediência a regras e a leis que não os tratam da mesma maneira?’
Agora, leitor, compare com isso o que diz em entrevista às páginas amarelas da Veja desta semana o renitente pensador e paladino da direita chamado Delfim Netto, amigo do presidente Lula:
“O velho Karl [Marx; essa intimidade afetuosa é um fenômeno extraordinário do teatro político brasileiro] constatou, antes mesmo do surgimento do mercado, que a liberdade e a igualdade são incompatíveis. Que o homem livre naturalmente produz a desigualdade.
Veja – E que, portanto, é preciso sufocar a liberdade para combater a desigualdade…
Delfim – Essa não é uma conclusão explícita de Marx, mas de seus falsificadores. Ele era um libertário. Seu problema foi ter se esquecido de que não há liberdade quando os meios de produção são estatais. Porque o Estado só dá emprego e benefícios para quem quiser. [….] Ao constatar a incompatibilidade entre a liberdade e a igualdade, Marx nos deu o caminho das pedras para instituir uma certa moralidade que falta ao mercado. Se a desigualdade é natural em um mundo livre, é justo que as pessoas comecem a competir tendo tido as mesmas oportunidades de educação e de saúde. É justo que todos comecem a corrida na linha de largada. Essa é uma constatação necessária”.
É uma bela salada, porque ao leitor distraído, ou sem treinamento específico, não ocorrerá que Delfim se refere à liberdade de, digamos, empreender, não às liberdades civis. E fica a frase: “A incompatibilidade entre a liberdade e a igualdade”.
Não estão em discussão aqui a liberdade de empreender e a garantia da propriedade.
Está em discussão a salada de conceitos que a Veja ouviu e, acrítica ou desavisadamente, ou jubilosamente, reproduziu.
Repitamos as palavras – um tanto rudes, é verdade – do professor Kant de Lima:
‘[….] a igualdade jurídica é uma conquista do século XVIII para o mercado poder desigualar. Você cria essa invenção de dizer que as pessoas são iguais para o mercado poder dar porrada em todo mundo”.
Imagine-se a expressão de assentimento que Delfim Netto teria ao ler essa frase. Assentimento em mais de um sentido: o conceitual e o concreto, o da porrada.
Em 29 de dezembro, o historiador Luiz Felipe de Alencastro escreveu na Folha de S. Paulo:
“Delfim Netto continuará desfrutando seu prestígio de comensal do Alvorada, de intérprete da economia brasileira e de colunista prolífico e muitas vezes pertinente que discorre sobre os destinos do capitalismo e do mundo. Para nós – certamente uma pequena minoria –, a eventual ascensão do sr. Delfim Netto ao governo de Lula configuraria uma flagrante traição política. Seria um acinte a uma parte dos que combateram a ditadura e ajudaram o PT a nascer e a crescer. Seria um desrespeito aos pais, aos irmãos e aos filhos daqueles que tiveram suas vidas e seus cadáveres roubados pela tirania do AI-5 e da Oban. Dessa falta política e moral, nenhuma reeleição, nenhum índice de aprovação poderá jamais salvar o governo Lula”.
É uma pena que não exista na internet um repositório dos textos do mais importante colunista político do século XX no Brasil, Carlos Castello Branco. Em 1994, Castellinho ainda vivo, a editora Revan publicou Retratos e fatos da história recente: perfis – Carlos Castello Branco, mas lá não encontro um texto que só li naquele dia e do qual nunca mais me esqueci. Deve ter sido no dia 14 de dezembro de 1968 ou num dos dias seguintes. No Jornal do Brasil. Explicava por que o maior beneficiário do AI-5, que acabara de ser decretado, havia sido o ministro da Fazenda, Delfim Netto. Castellinho dizia que Delfim, com o AI-5, esmagara a Federação – estados e municípios agora inteiramente submissos ao poder central.
E vai aqui uma achega à biografia do ex-ministro todo-poderoso, tirada do livro AI-5, A Opressão no Brasil, do jornalista Hélio Contreiras (Rio de Janeiro, Record, 2005, pág. 85). A imprensa há muito renunciou a contextualizar Delfim Netto, que escreve regularmente em numerosos veículos, entre eles Folha de S. Paulo, Valor e Carta Capital. Façamos o possível para remediar, em escala infinitesimal, essa lacuna.
O trecho está numa entrevista que Contreiras faz com o coronel da reserva do Exército Amerino Raposo:
“ – Houve, então, um aprofundamento dos desvios que em 1967 motivariam, na sua avaliação, um relatório em que o senhor criticou o então ministro Delfim Netto?
– Sim. Exatamente. Mencionei no relatório certas atitudes antiéticas do então ministro Delfim Netto, em 1967.
– Atitudes pessoais ou políticas, no exercício do cargo?
– Pessoais e políticas. Falta ao ministro decoro para o exercício do cargo e ele próprio, no exercício do cargo, não falava a verdade sobre a situação econômico-financeira do país, e era beneficiado pela censura”.
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