Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia não deu a principal decisão do STF

A mídia parece que não atinou com o dado mais importante implícito nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Por causa das árvores, não enxergou a floresta.


 


Ao não rejeitar por inteiro o pedido de abertura de processo contra os 40 arrolados pelo procurador-geral da República, o TSF já julgou que o sistema de suborno de deputados para votar ao gosto do governo, chamado mensalão, existiu.


 


O que se discutirá no futuro – sabe-se lá por quantos anos – é quais dos não-inocentados em princípio dessa ou daquela acusação formulada contra eles são efetivamente culpados.


 


Não é razoável esperar, se e quando o julgamento dos réus, caso a caso, chegar ao fim, que todos sejam absolvidos.


 


Não só não é razoável, como o Estado ressalta hoje que o ‘julgamento do mérito já aparece’. Dos repórteres Leonencio Nossa e Eugênia Lopes:


 


‘Foi assim, por exemplo, quando o ministro Cesar Peluso defendeu uma ação contra o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato. ´Há desvios concretizados em contrato, no mínimo é peculato culposo´, afirmou ao comentar o desvio de R$ 73 milhões do banco para o esquema. O ministro Carlos Ayres Britto chegou a comparar os acusados no mensalão aos governadores corruptos do Brasil Colônia.’


 


E por falar em Estadão, compare-se a pobreza informativa de sua manchete sobre o assunto com as da concorrência.


 


Folha: ‘Gushiken e Valério viram réus; Dirceu escapa de uma acusação’, com o sub-título ‘STF abre processo contra 19 por mensalão; ex-chefe da Casa Civil ainda enfrenta denúncias’.


 


Globo: ‘Gushiken e Valério puxam lista dos 19 primeiros réus’, com o sub-título ‘Dirceu, Genoino e Delúbio escapam de peculato, mas ainda podem ser processados’.


 


E o Estado: ‘Mensalão já tem 19 réus’, com o sub-título ‘Dois ministros de Lula entre os acusados no Supremo por peculato e lavagem de dinheiro’. Nomes dos já réus, ou dos ainda não, nem pensar.


 


P.S. Ainda a ‘privacidade’


 


Para todos quantos escreveram ao Verbo Solto, condenando o Globo pela publicação dos e-mails dos ministros do Supremo – e apreciam se expôr a opiniões divergentes das suas – eis os editoriais da Folha e do Estado a respeito.


 


O da Folha se intitula ‘Colóquio na corte’:


 


‘Poderia ter sido muito pior -e mesmo assim não haveria nada de incorreto. Os meandros do mensalão começavam a ser postos em debate no Supremo Tribunal Federal quando uma conversa eletrônica entre dois membros daquela corte de Justiça foi flagrada por lentes fotográficas.


 


A ministra Cármen Lúcia trocava impressões com seu colega Ricardo Lewandowski, não só a respeito do teor das acusações em pauta, mas também do comportamento presumível de outro ministro, a quem, de modo mais jocoso do que sibilino, denominou de ‘Cupido’. Não foram necessários longos esforços de hermenêutica para deduzir-se que se tratava de seu vizinho no plenário, o ministro Eros Grau.


O incidente não teria, à primeira vista, dimensões para suscitar mais do que um pálido sorriso, como aqueles que pairam, por vezes, nos rostos da estatuária clássica. Humanos, demasiado humanos, também os juízes se articulam nos bastidores, trocam informações reservadas e lançam em segredo, sobre seus colegas, as farpas da suspeita.


 


Mais que isso estava em jogo, todavia, e houve quem reagisse à divulgação do colóquio pelo jornal carioca ‘O Globo’ de forma exacerbada. Ex-presidente do STF, o atual ministro da Defesa Nelson Jobim qualificou de ‘intromissão anticonstitucional’ aquele flagrante fotográfico.


Vão-se tornando comuns as situações em que, por força do progresso tecnológico, reduz-se de forma drástica o diâmetro da privacidade individual. Certamente renova-se, com isto, a discussão sobre quais as responsabilidades da imprensa quando se trata de divulgar aquilo que, tempos atrás, não havia meios de captar.


 


É o interesse público que deve presidir o exame de cada caso específico. A conversa entre os dois ministros do STF incidia sobre assunto indiscutivelmente relevante. Tratava-se de um hipotético acordo entre Eros Grau e o governo Lula, em torno da nomeação de um novo membro daquela corte. Na interpretação do ministro Lewandowski, a tendência de Eros Grau para não acolher a denúncia contra os envolvidos no mensalão viria a corroborar essa hipótese.


Seria ingênuo imaginar que o STF esteja imune ao jogo das considerações políticas; seria também abusivo considerar que, num caso de grande complexidade jurídica como o do mensalão, não possa haver decisões independentes e fundamentadas em favor de qualquer lado no debate.


 


Nem a legitimidade das decisões do Supremo Tribunal Federal nem a dimensão política de todo julgamento desse tribunal tornam-se suscetíveis de reavaliação automática a partir desse episódio. Mas este ampliou, entretanto, os recursos à disposição da opinião pública -já beneficiada com a própria transmissão das sessões pela TV- para acompanhar as atitudes de seus membros. Toda instituição republicana, por mais augusta que seja, pertence ao conjunto dos cidadãos; e estes só têm a ganhar com a transparência.’


 


Agora, o do Estado, ‘A imprensa fez a coisa certa’


 


‘Mais uma vez a imprensa foi levada ao banco dos réus por ter o jornal O Globo divulgado as mensagens de correio eletrônico entre os ministros Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), captadas pelo fotógrafo Roberto Stuckert Filho. Eles trocaram e-mails na sessão de quarta-feira da Corte, reunida para decidir se abre o processo requerido pelo procurador-geral da República contra 40 acusados de envolvimento com o mensalão. O presidente Lula falou em “invasão de privacidade”. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, ex-titular do Supremo, em “intromissão anticonstitucional em um poder da República”. O presidente da OAB, Cezar Britto, afirmou que o Brasil não pode ter um Big Brother nem cair num “estado de bisbilhotagem”. O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Walter Nunes, considerou que “a revelação das conversas entre os ministros maltrata o princípio basilar da democracia”.

A confusão é geral, diria Machado de Assis; mas não precisava ser. As democracias são regidas, entre outras, por duas leis de bronze. Uma assegura à sociedade o direito à informação. Outra assegura o direito à intimidade. Por vezes esses princípios parecem a caminho de colidir na zona de sombra de onde termina o primeiro e onde começa o segundo. Porém não – definitivamente, não – neste caso. A informação que a ordem democrática assegura diz respeito aos atos de interesse público praticados por agentes públicos, ainda mais em recintos públicos, mais ainda em eventos públicos – abertos aos “do povo”, como dizem os juristas, e àqueles cuja missão consiste em lhes dar ciência do que se passa nas instituições que sustentam e existem para servi-los. Fora disso, a vida privada é inviolável, salvo por ordem judicial em contrário, como nas autorizações para a interceptação de comunicações de suspeitos de atividades ilícitas, em inquéritos criminais ou na instrução de processos penais.

“Bisbilhotar”, para usar o termo do dia, a esfera particular de figuras públicas – ou seja, as suas atividades e relacionamentos, quando não há motivo razoável para presumir que possam afetar o apropriado exercício de suas funções – é algo inaceitável e merecedor de sanções severas. É também, na sociedade do espetáculo dos dias atuais, em toda parte, um aviltamento dos padrões elementares de decência comum sem os quais a civilidade é no máximo um simulacro. Mas não faz o menor sentido equiparar aos malefícios da cultura de massa, simbolizada por esse detrito televisivo chamado Big Brother – e muito menos à sua versão orwelliana -, o registro e a divulgação de diálogos – por que meio se dêem, ao alcance de terceiros – entre dois membros da mais elevada instância do Poder Judiciário num julgamento de interesse nacional e franqueado à mídia. Esse último fato, aliás, só engrandece o Supremo. O televisionamento dos seus debates é um exemplo reconfortante de que, apesar de tudo, as instituições funcionam.

Onde, portanto, a invasão de privacidade ou a intromissão anticonstitucional quando os ministros interlocutores, na plena condição de agentes públicos togados, trocavam idéias sobre questões públicas? A imprensa não só nada transgrediu, mas fez a coisa certa, aquela que é a sua razão de ser: desvendar para a coletividade o que ela precisa saber, como atributo de cidadania. Jornalista e jornal serviram ao público, informando-o do que pensam dois ministros do STF sobre a matéria a respeito da qual devem se pronunciar, sobre os motivos do presumível voto de um colega no mesmo caso e sobre aspectos da nomeação do eventual substituto de outro, que acabou de se aposentar. O problema – e cada qual julgue como queira se problema existe – seria a adequação da conduta dos dois magistrados, naquelas circunstâncias específicas, e o teor do que se escreveram, de forma acessível às lentes de um fotógrafo a poucos passos deles. O que conta é que os brasileiros comuns puderam conhecer algo do funcionamento da sua Corte maior.

Nas palavras do jurista Ives Gandra Martins, “foi um brilhante trabalho de jornalismo, mas, para quem vive a rotina do Judiciário, nada do que foi apresentado é novo”. Exemplifica: “Às vezes, frases agressivas são trocadas até na hora do café. Só que para o público isso não costuma ser revelado.”


 


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