O mito das redações independentes
Uma das características mais representativas da imprensa brasileira na última década tem sido a homogeneidade dos pontos de vista que expõe claramente em seu conteúdo ou deixa implícitos na hierarquia de suas escolhas editoriais.
A rigor, não há concorrência entre os grandes jornais de circulação nacional – e a liderança do grupo Globo sobre as outras redes de televisão é aceita passivamente pelo setor, desde que sobrem fatias consistentes do bolo publicitário para todas elas.
Esse é um retrato básico do sistema da mídia, que serve para ilustrar como certas edições parecem ter sido planejadas numa única redação – e como expressões e mantras utilizados para defender determinados pontos de vista, criados por um colunista de um jornal, são imediatamente adotados por articulistas de outro jornal.
A homogeneidade do discurso, exercitada ao longo dos anos, faz com que as narrativas se tornem muito assemelhadas, e é isso que faz da imprensa brasileira uma força política considerável.
Esse sistema precisa encontrar repercussão nas instituições e na sociedade – condição indispensável para manter seu valor percebido -, mas também necessita ser alimentado por verbas publicitárias para custear seu funcionamento.
A influência da mídia tradicional nas instituições vem sendo demonstrada há muito tempo e se reflete na manutenção de um estado permanente de crise no campo da política e de um viés sempre pessimista quanto à situação econômica do País.
Sua influência direta sobre a sociedade, porém, foi colocada em dúvida no final do ano passado, quando a imprensa perdeu a eleição presidencial.
Por isso, as manifestações do último domingo precisam ser capitalizadas ao extremo pelos editores: elas consolidam o apoio de grande parcela das classes médias urbanas ao projeto de poder que move a imprensa.
O noticiário intenso sobre supostas consequências dos protestos, como uma improvável reforma ministerial, torna mais denso o protagonismo daqueles que foram às ruas tentar inverter o resultado da eleição de 2014.
A pesquisa oportunista do Datafolha sobre a queda na aprovação da presidente da República, apresentada sem referência ao contexto que definiu as opiniões, tem esse propósito.
O discurso em cima do muro
Essa oportunidade de consolidar sua influência sobre parte da sociedade explica o grande interesse da mídia em fazer barulho em torno de um relatório não oficial sobre a política de comunicação do governo federal e, de certa forma, ajuda a entender o estremecimento causado pela demissão do executivo que durante doze anos comandou a área de comunicação da Petrobras.
As grandes empresas de mídia temem que a demissão do gerente da estatal, Wilson Santarosa, e uma possível substituição do chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Thomas Traumann, venham a produzir uma redução nos gastos com publicidade do Executivo e da Petrobras.
Então, temos o cenário estranho no qual a imprensa agride continuamente o governo, enquanto os responsáveis pela comunicação oficial, tanto no Planalto quanto na Petrobras, despejam rios de dinheiro em anúncios de duvidosa eficiência na mídia tradicional e patrocinam comédias de alto custo e baixa qualidade no principal grupo de comunicação do País.
Enquanto isso, o interessante projeto dos coletivos de cultura e a proposta de fortalecer as iniciativas de mídia regional e comunitária ficam às moscas.
Nesta sexta-feira (20/3), curiosamente, há uma ruptura na homogeneidade das escolhas editoriais dos principais diários.
O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo noticiam que a presidente Dilma Rousseff não vai fazer uma reforma ministerial, enquanto o Globo aposta na manchete: "Pressionada, Dilma fará mudanças no Ministério".
Essa suposta divergência, porém, não esconde o propósito das duas abordagens diferentes, que é provocar uma mudança na composição e na orientação do governo.
O projeto de poder apoiado pela mídia tradicional foi derrotado nas urnas, mas seus operadores não consideram que a eleição acabou.
A imprensa brasileira não é uma instituição democrática e tampouco atua como um contrapoder dedicado a questionar o Estado, como defendem alguns.
O sistema da mídia poderia ser esse contrapoder democrático, mas se comporta como uma instância na disputa direta do poder, que utiliza o jornalismo como instrumento de pressão.
O mito das "redações independentes" é apenas uma justificativa moral para discursos proferidos de cima do muro.